sábado, 16 de outubro de 2010
Noctívagos, insones & afins - Uma história antiga
Adão Cruz
A história é antiga. E a sua recordação foi-me trazida hoje à memória por uma outra, passada hoje mesmo comigo, um tanto ou quanto semelhante, mas menos interessante, algo incomodativa e até um pouco deprimente. Mas esta de hoje não a vou contar, pelo menos por agora. O café não é o mesmo, a época não é a mesma, a vida não é a mesma, as circunstâncias são diferentes e o objecto ou objectivo ou fim da história é diferente.
Foi há muitos anos, quando eu era estudante do segundo ano de medicina. Estava no velho Café Progresso a estudar, ainda me recordo, embriologia, a estúpida abordagem da embriologia de então, que nada tem a ver com as maravilhosas lições de Richard Dawkins. Estava sentado numa daquelas pequenas mesas quadradas, mesmo junto à porta que dava para a Travessa Sá Noronha.
Tinha pedido ao empregado um café e um brandy. Pouco tempo depois, um velhinho dos seus oitentas e tal, noventas, como não tinha lugar - as mesas estavam cheias de jogadores de damas e dominó – fez um gesto para se sentar na minha mesa, ao qual eu acedi com um discreto sorriso. Sentou-se, pôs a bengalita entre as pernas, cruzou as mãos e fitou os olhos lá para o fundo do café, talvez o seu único infinito.
Estava eu embrenhado na minha leitura, com o livro a uns quarenta e cinco graus em relação ao plano da mesa, portanto com um campo visual relativamente limitado, quando vejo a mão do velhote deslizar sorrateiramente pela mesa até ao meu cálice de brandy, fazer do dedo indicador uma espécie de gatilho, arrastá-lo suavemente até si, e, rapidamente, com notório trémulo, levá-lo à boca e sorver uma boa golada. Com o copo de novo em cima da mesa, iniciou delicadamente o trajecto inverso, fazendo-o deslizar suavemente e manhosamente até debaixo das costas do meu livro.
Procurei não olhar para ele, como é óbvio, pois de modo algum pretendia denunciar o seu gesto que me encheu de ternura. A vida tem coisas cuja dimensão de simplicidade, autenticidade e verdade é tão grande que as transforma em irradiantes e majestáticos fenómenos de coerência. Deitei, contudo, o rabo do olho para a sua cara e notei que a sua fisionomia denotava a satisfação de um golpe de mestre. Que bem me soube aquele brandy, mesmo sem lhe ter tocado!
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Que delícia esta ternura hoje já muito rara!
ResponderEliminarFantástia história.
Bingo, Paxiano!
ResponderEliminarAté que enfim!... Tarde mas acertei.
ResponderEliminarQue diabo... não se pode errar sempre D. augusta clara!