sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O Mistério da camioneta fantasma, de Hélder Costa -20 e 21

(Continuação)

Cena 20

Pesadelo e melancolia

(Musica e luz intermitente)

Berta Maia – Diz-me Dente de Ouro: quem te mandou matar o meu marido?

(esta fala é repetida por outras vozes a seguir a cada fala de BM ou de AO)


Abel Olímpio – Ninguém mandou. Desconfie a senhora daqueles que mais choram o seu marido.

Berta Maia – Tu hás-de falar. Tu falarás.

Abel Olímpio – Padre Lima, ... ia receber dinheiro ao jornal “A Época”...

Berta Maia – Eles vão-te matar. Não morras sem me dizeres a verdade.

Abel Olímpio – Minha senhora, a República não avança porque os monárquicos se introduzem nela e não deixam.

Berta Maia – Fala, Dente de Ouro... fala!

Abel Olímpio – Eu fui aliciado pelo Padre Lima, residente na Rua da Assunção, 56 – Direito.

Sou o cabo de artilharia da Armada, nº 2170, e estou a prestar declarações sem coacção, nem dádivas ou promessas, para efeitos de justiça e revisão do processo das vítimas de 19 de Outubro.

O Padre Lima dizia nas reuniões: “no próximo movimento revolucionário, depois de tudo organizado, como devia ser, lançavam-se no movimento para o empalmar, e donos da situação liquidavam-se os republicanos, em especial os do 5 de Outubro, e vingava-se a morte de el-rei D. Carlos”.

Berta Maia (com o filho nos braços) – Ninguém me pode dar o meu marido. Mas limpei a sua honra e o ideal dos republicanos honestos.

(Slide—morte de Carlos da Maia e reprodução ao vivo—Dente de Ouro dá tiro na nuca a Carlos da Maia)

Cena 21

O silêncio

(Salazar sentado numa cadeira É novo, entra senhora Maria. Mimam cálices de porto).

Senhora Maria – Aqui está o biscoitinho e o portinho, senhor doutor.

Salazar – Muito obrigado, senhora Maria. Olhe, não quer um cálicezinho?

Senhora Maria – Não vale a pena, muito obrigada, senhor doutor.

Salazar - Vá lá, tome lá um golinho... que é para não dizer que o Salazar é um sovina.

Senhora Maria – Valha-me Deus, se alguma vez eu era capaz de uma coisa dessas!

Salazar - É que eu estou satisfeito com umas coisas, quero comemorar, e também quero saber a sua opinião

Senhora Maria - Se eu souber dizer alguma coisa que se aproveite...

Salazar – O que é que pensa daquele caso do Dente de Ouro?

Senhora Maria – Olhe, senhor doutor, vê-se que Deus não dorme. Quem é que havia de dizer que passados tantos anos, aquele monstro ia começar a falar... grande mulher, aquela senhora...

Salazar – Pois olhe, eu acho que isto já deu conversa a mais e vou proibir que os jornais falem do assunto.

Senhora Maria – O senhor doutor é que sabe, mas olhe que agora, anda toda a gente a querer saber o que se passou... e parece que aquele bandido que matou a Maria Alves também estava metido nisso...

Salazar – O perigo disto é que há amigos nossos que estiveram metidos no caso, e se isso se sabe é uma carga de trabalhos.

Senhora Maria – Parece impossível. Então não foram esses republicanos, ou lá o que é, que mataram aqueles senhores?

Salazar – Está a ver... a coisa estava tão bem feita, que até a senhora acreditou... está-se a descobrir que foi a nossa gente quem organizou tudo; é por isso que tem de se pôr uma pedra sobre o assunto.

Senhora Maria – O que vai haver pr’aí de barulho...

Salazar – Está enganada. Esses republicanos, democratas e revolucionários e outros nomes que lhes quiser chamar, calam-se todos.

Senhora Maria – Oh senhor doutor!

Salazar – Mataram o Machado Santos e quem é que quer saber disso? O Carlos da Maia, com a mania da seriedade... e o Granjo...

Senhora Maria – O senhor Granjo parece que até estava a governar menos mal...

Salazar – Estava, estava. Estava a cortar no que a populaça exigia. Era para ficar bem visto pelos capitalistas. Esse ainda está pior. Primeiro, porque os seus antigos companheiros aproveitaram isso para dizer que ele tinha mudado, que já não merecia confiança, e que foi muito bem feito ter morrido como morreu. Os capitalistas e os monárquicos também não irão mexer uma palha, porque esse tipo de política é para ser feita por nós, e não por eles.

Está a perceber porque é que eles se vão calar?

Senhora Maria – Alguém há-de refilar.

Salazar – Senhora Maria, vai tudo ficar calado, até porque apanharam medo a sério. Já perceberam que a gente não está para brincar, e que as coisas vão mesmo endireitar. O reviralho acabou.
Umas prisões, uns safanões dados a tempo, umas deportações para bem longe... Timor, Cabo Verde, Costa de África... ficam a fazer a revolução com os pretinhos...eles é que gostam dessas algazarras… (ri)... os que nós deixarmos por aqui, a gente já os conhece... não fazem mal a uma mosca e até convém que digam as suas coisas para parecer que o nosso regime respeita a liberdade. Está tudo bem assim, e nem podia ser de outra forma.

Senhora Maria – O Senhor doutor Salazar é muito inteligente.



Salazar (bebe) – Olha traga-me a minha mantinha….

(Senhora. Maria põe-lhe a manta nos joelhos)

É muito bom este vinho do Porto...

(Som de máquina de escrever e voz)

- Condenados só vi, até agora, os executores, aqueles cujas culpas não oferecem dúvidas. Trabalharam por sua conta estes carrascos? Saiu das suas cabeças essa ideia terrível de assassinar gente honrada e deixar com vida tantos miseráveis?

Quem preparou a aura do terror? Das suas revelações é que depende a justiça, não a do tribunal republicano, que só condena marujos e soldados, mas a outra, a que algum dia, tarde ou cedo, se fará em nome da Nação.

Rocha Martins

(Som da camioneta. Faróis no ciclorama .)

Voz off (acompanhando a entrada dos personagens)


Os autores morais dos crimes nunca foram inquiridos.

Alfredo da Silva fugiu para Espanha, voltou a financiar outro golpe – o 28 de Maio – e foi recompensado com A Tabaqueira, o grande negócio dos tabacos.

Gastão de Melo e Matos, monárquico e investigador pertenceu à Comissão de Censura de Espectáculos

Carlos Pereira continuou a dirigir a sua Companhia das Aguas

O Padre Lima voltou para a terra, sendo pároco em Macedo de Cavaleiros e Mogadouro. Morreu em paz .

Augusto Gomes, preso pelo assassinato de Maria Alves

Abel Olímpio, o Dente de Ouro, foi degredado para Àfrica.

O sargento que assassinou Carlos da Maia nunca foi preso.

Tinha-se dado o golpe do 28 de Maio, e estes crimes foram cobertos com um oportuno manto de silêncio.

( 4 Actores (Alfredo da Silva, Gastão de Melo e Matos, Carlos Pereira e Padre Lima) atiram para os projectores que se vão apagando até se atingir o black – out)

FIM

Saída do publico com

One O’clock jump de Duke Elington

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