segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O saber das crianças e a psicanálise da sua sexualidade –4: por Raúl Iturra.

A castração marca a interdição, é da ordem do sacrifício. Tendo como contexto a via do mito da horda primeva naquilo que viabiliza a estrutura, como é o caso desse texto, nota-se que o facto dos filhos não puderem aceder às mulheres num primeiro momento hipotético não indica, necessariamente, que eles seriam, dali por diante, castrados, apesar de a lei já circular. Com o assassinato do pai fizeram um acordo, uma hipotética ordem social, um funcionamento viável ao instituir os dois tabus, donde se deduz o que deve ter passado pela subjectividade, cada um pôde assim renunciar e consentir em perda, submetendo-se à interdição. Aqui encontramos a função do pai como agente da castração, o pai não é o castrador é antes o agente da castração, tendo a castração como enunciado de uma interdição.

A função do pai na vida social é complexa. As análises dos autores citados e as dos seus comentaristas, definem um papel de ser humano legislador. Perguntar-me-ia com Cyrulnik a quem pertence a criança, ao pai ou à mãe, ou aos dois? Com todas estas definições para entrar na mente cultural e nos secretos que as crianças guardam, frase retirada do título de um dos textos de Freud, como é possível amar? Na minha própria análise, lembro-me de ter admirado meu Senhor Pai sempre como um exemplo, com imensas virtudes e ensino pragmático sobre a vida. Nunca falou comigo de amores ou paixão, deixou a temática para a nossa Senhora Mãe, como narro noutros livros meus. Lembro-me perfeitamente que o nosso Senhor Pai, por capricho pessoal, pretendia que eu desse o melhor de mim em saber, em perspicácia, uma exibição tipo macaco do filho que ele amava e que não queria castrar. Soubesse ele ou não, que com a sua atitude, impingia na criança, uma imensa timidez e uma obediência cega. Ensinou-me música, ao ouvirmos juntos discos gravados de autores clássicos e barrocos. Lembro-me ainda, de ter aprendido a ler no seu colo, enquanto ele lia os seus livros. Esse capricho passou a ser um facto: não havia escola para o menino, o menino devia estudar em casa. A escola não era para ele ir. A escola devia aparecer ao pé dele.

Foi assim como o meu processo de ensino – aprendizagem aconteceu dentro dos muros de casa: docentes pagos, ensinavam e tratavam da minha disciplina de estudo. Permito-me dizer, que este facto é uma maneira de castrar ao ter sido retirado da interacção social com crianças pares em idade e condição social. A mãe defendia o meu direito à liberdade e à interacção social, mas não foi ouvida e dedicou o seu amor de seio bom, a explicar o abecedário e a complementar as minhas leituras. Essa liberdade que os pais pretendiam, foi um tiro de culatra mal orientado. Pensar em ir à escola, era para mim um horror. No entanto, acabei por ganhar imensos amigos de casa, a amar e brincar com a família nuclear, esses imensos irmãos que eu tinha ou os meus pares, filhos de amigos dos pais. O meu pré-consciente deve-me ter defendido, ao pôr uma condição por causa de não ir à escola. Havia uma rapariga loura que eu gostava imenso, filha de um operário. Queria beijá-la, abraça-la, namorar. Aceitei esse comando de não ir à escola com a condição de ela aparecer em casa, à hora do chá, depois das lições. Foram os beijos mais lindos e queridos que eu posso lembrar. Eram beijos inocentes para os adultos que nada sabiam da libido infantil. Se eu queria, nos meus cinco anos, a Lucy em casa, era pelo prazer erótico que nascia dentro de mim, ao percorrer o seu corpo com as minhas mãos. Era um regalo para mim! Condição que, um pensado pai não castrador, me induzia. Gostava, aliás, de contar essas histórias à família alargada, para desgosto deles, especialmente para o da nossa Senhora Mãe, uma mulher muito devota, de missa em casa, de terço de joelhos todos os dias, de Missa cedo de manhã aos domingos e, se fosse possível, durante a semana. Foi o começo da minha forma de matar o pai e de me juntar à mãe para ajudar nos seus afazeres com as mulheres do operariado da indústria. Um começo da morte da imagem do pai. A minha organização genital infantil estava a ser mal estruturada. Deve ser o caso de muitos meninos. Digam ou não. Tenham vergonha ou preconceito ou não.


Da parte do pai, o erotismo era o pedido, quase mandado. Da parte da mãe, castidade, continência e amores-perfeitos, como os que ela mandava cultivar no jardim. Contradição que eu soube ultrapassar ao parecer casto e puro perante a mãe, erótico perante o pai. O problema foi cortado por mim com tesouras psicológicas, justo no meio: estudo e falta de amigos, foram substituídos por leituras de colecções imensas de livros oferecidos pelo pai, que não se sabia castrador. Charles Dickens, Shakespeare, os mitos gregos e outras leituras para adultos, Daniel Dafoe e essa maravilha denominada Robinson Crusoe , eram eternamente lidas, ou Stephan Zweig, e, especialmente, esse encantador livro de Júlio Verne, de 1870, Veinte mil leguas de viaje submarina, editados em esse tempo por Planeta, Madrid . Eram livros excitantes, cheios de fantasia, esse sentimento não recomendado por Freud. Acordavam ideias difíceis de resolver. Incitava a imaginação com perca para o saber. Organizavam a libido infantil de uma outra maneira, mais para o imaginário do que para a materialidade, como tenho analisado noutros livros meus.
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Notas:
 
Texto retirado do artigo de Cármen Sílvia Cervelatti: “A função do pai. Uma articulação possível”, em:


http://www.ebp.org.br/biblioteca/pdf_biblioteca/Carmen_Silvia_Cervelatti_A%20funcao_do_pai.pdf



Cyrulnik, Boris, 1993 : Les Nourritures Affectives, Ódile Jacob, Paris. Não está em linha, mas é comentado em : http://www.boulimie.fr/livres/cyrulnik2_bon.htm , bem como em várias entradas Internet da página web:

http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Boris+Cyrulnik+Les+Nourritures+Affectives&btnG=Pesquisa+do+Google&meta=&aq=f&oq=Boris+Cyrulnik+

Dafoe, Daniel, 1719: Robinson Crusoe, editado em 1950 pela colecção para crianças da Editora Paidós.



Livro comentado em: http://www.google.com.br/search?hl=pt-PT&q=Vinte+mil+milhas+de+vi%C3%A2gem+submarino%2C+romance&aq=f&oq=



Iturra, Raúl, (1997) 2007: O imaginário das crianças. Os silêncios da cultura oral, Fim de Século, Lisboa. Texto comentado por mim, a partir de uma conferência para os professores de Louriçal, vila perto da cidade da Figueira da Foz, no nosso Jornal a Página, Nº 102, Ano 10, Maio 2001página 24, texto completo em: http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=1419, Mais

comentários em: http://www.google.com.br/search?hl=pt-PT&q=Ra%C3%BAl+Iturra.+O+imagin%C3%A1rio+das+crian%C3%A7as.+Os+sil%C3%AAncios+da+cultura+oral&aq=f&oq=

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