domingo, 10 de outubro de 2010

O Setentrião – um projecto cultural em Trás-os-Montes e Alto Douro (1)


Carlos Loures

Contra ventos e marés, em Dezembro de 1961, saí da RTP, onde tinha o chamado «lugar de futuro» e fui para a Fundação Calouste Gulbenkian, encarregar-me de uma biblioteca itinerante – a palavra «itinerante» soava mal e, na perspectiva da família, abandonara um «lugar de futuro» para ir para uma espécie de trabalho de saltimbanco. Tinha 24 anos, casara meses antes, o primeiro filho (uma filha) vinha a caminho e todas estas circunstâncias agravavam a opinião que faziam da minha decisão. Só a minha mulher me apoiou.

Mas, má ou boa, era uma decisão e estava tomada. Fizera o estágio em fins de tarde, numa biblioteca dos arredores de Lisboa, fui aprovado e no dia 27 de Dezembro de 1961, uma sexta-feira, trabalhei até ao fim do dia na RTP, e despedi-me dos colegas. No sábado 28, manhã cedo, apresentei-me na sede da Gulbenkian.

Parti de Lisboa ao fim da manhã com o António Barahona da Fonseca e a Luiza Neto Jorge, na altura casados. Ele ia ocupar o lugar de Encarregado de Biblioteca da Gulbenkian numa cidade a Norte, Bragança, salvo erro. Viemos no carro da biblioteca itinerante dele, conduzido pelo respectivo motorista. O carro-biblioteca que me era destinado e que estava em Vila Real desde o dia 22, ardera completamente com o de Lisboa, antes da inauguração cuja data seria cumprida. A Gulbenkian encomendara já outro carro à Citroën.

De notar que entre os Encarregados de Biblioteca dos primeiros anos houve escritores como Alexandre O’Neill, Herberto Helder, António José Forte, Saldanha da Gama, Afonso Cautela, José Ferreira Monte, o já referido Barahona da Fonseca e tantos outros. O próprio director do Serviço, Branquinho da Fonseca trabalhara na biblioteca itinerante do Museu Castro Guimarães, de Cascais, e fora essa a razão porque Azeredo Perdigão o convidou para o cargo.

Foi uma viagem agradável, mas interrompida no primeiro dia por um nevoeiro cerrado e depois por um forte nevão que nos obrigou a dormir em Castro Daire. O carro estava em rodagem – os 450 km que na época nos separavam da capital demoraram mais de 12 horas a percorrer. No domingo, chegámos cedo a Vila Real. Almoçámos, eles seguiram e eu fiquei numa cidade que não conhecia, mas que logo me fascinou. Resolvidos os assuntos mais urgentes - arranjar quarto e ver as instalações da biblioteca - passeei ao entardecer pelo burgo, aspirando, misturado com o ar frio, o delicioso odor da lenha queimada nas lareiras e fogões. Um citadino fascinado pela ruralidade que entrava por Vila Real dentro.

Nessa mesma noite, escrevi a minha mulher fazendo-lhe o relatório - «A cidade é muito bonita e agradável, os cafés são bons (este era para mim, habitante de cafés, um requisito muito importante para que uma cidade fosse aceitável!) e há um cinema com três ou quatro sessões semanais. O frio suporta-se muito bem». Explorei minuciosamente a cidade que não era tão grande como agora. Depois de uma criteriosa vistoria aos cafés do centro, adoptei a Pastelaria Gomes como gabinete de trabalho.

Passava ali as manhãs, lendo e escrevendo e as noites até a porta ser encerrada. Quando na noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro de 1962, indiferente aos festejos que havia pela cidade, ao vir a pé para o local onde dormia, na Rua Nova, deparei na Avenida Carvalho Araújo, particularmente no perímetro do Governo Civil, com um forte dispositivo policial – guardas armados, uns com Mausers outros com pistolas-metralhadoras, equipados com os seus sinistros capacetes pretos.

Só no dia seguinte pela manhã tive a explicação ao comprar o Jornal de Notícias – Delgado entrara em Portugal clandestinamente para comandar uma revolta que deveria eclodir no Regimento de Infantaria 3, em Beja. Como se sabe, o malogro dessa iniciativa levou à prisão de dezenas de militares e civis. Um deles, o então capitão Varela Gomes, que ficou gravemente ferido. Quando em 1965 fui preso pela PIDE, passada a fase da dos interrogatórios, no recreio do Reduto Norte, passei pela janela do seu cárcere que ficava rente ao pátio e fiz-lhe um dissimulado gesto de saudação a que ele correspondeu. Anos mais tarde, trabalhámos ambos no mesmo grupo editorial e, embora sem grande convívio, mantivemos uma boa relação.

No dia 2 de Janeiro, encontrei a Tipografia Minerva, que funcionava no Seminário, e fui lá pedir orçamento para a execução gráfica do meu livro Arcano Solar. O empregado que me atendeu, disse-me que teria de falar com o Sr. Padre António Cabral e a que horas ele lá estaria. E foi desse modo que conheci António Cabral . E depois, apresentados por ele, o Ascenso Gomes. o Eduardo Guerra Carneiro (o Amarelinho, como lhe chamava o Ascenso), Gonçalinho de Oliveira, e tantos outros.

O António Cabral, sendo um grande poeta, era ao mesmo tempo um homem com um grande sentido prático e, decorridas poucas conversas, à mesa da Gomes, na Toca da Raposa ou simplesmente deambulando pela cidade, propôs-me que colaborasse na concretização do número duplo da revista quer com textos meus, quer utilizando o facto de eu conhecer numerosos escritores como o Manuel de Castro, Maria Rosa Colaço, o Fèlix Cucurull (convidei muitos outros, entre eles o Luiz Pacheco – por preguiça ou por atraso na entrega, nem todos corresponderam à minha solicitação).

No decurso da organização da revista, fizemos, no carro do António Cabral, diversas viagens ao Porto, onde contactávamos com gente das Notícias do Bloqueio, a maior parte da qual eu já conhecia, pois em 1959 ali estivera promovendo a «Pirâmide», amigos como o Egito Gonçalves, o Rebordão Navarro, o Papiniano Carlos, o Luís Veiga Leitão e Jaime Isidoro da galeria Dominguez Alvarez Numa dessas incursões, estivemos no ateliê do Nuno Barreto. Noutra ou na mesma, já não me recordo, falámos com o Nadir Afonso.

A chegada de António Barreto e de Eurico Figueiredo, ambos ligados ao movimento do Setentrião e acabados de sair da prisão de Caxias (tinham sido presos na sequência das comemorações do Dia do Estudante), foi um acontecimento. Demos várias voltas à Avenida Carvalho Araújo, contando-nos eles o que lhes tinha acontecido. Pela primeira vez ouvi falar nas «gavetas» de Caxias e nos «curros» do Aljube, da tortura do sono...

Mas como a experiência é a madre de todas as cousas, passados três anos eu estava a aprender por minha conta todas esses saberes, voltando depois para um segundo semestre lectivo em 1968. A crise de 1962, surgida da luta que começara em 1958 com o terramoto Delgado, só terminaria em 25 de Abril de 1974.

(Continua)

4 comentários:

  1. Está na altura de começares a escrever a autobiografia.

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  2. Isto é das Claras? Faço minhas as tuas palavras.

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  3. As Claras são claríssimas: está na hora!

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  4. Autobiografia? Mas pensam que eu sou o De Gaulle? Ó clarissas (descalças?)eu vou contando umas coisas que me vão ocorrendo, agora autobiografia não faço.

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