domingo, 24 de outubro de 2010

O Zé Povinho está desactualizado?


O Zé Povinho criado por Rafael Bordalo Pinheiro não corresponde, na sua imagem gráfica, ao português típico do nosso tempo. Hoje, talvez tivesse que ser caracterizado graficamente de outra forma - segurando na mão esquerda um portátil e na direita um diploma das "novas oportunidades", por exemplo. Os tempos eram outros nesse último quartel do século XIX, embora os problemas de fundo não fossem assim tão diferentes como isso.

Entre 1851 e 1871, ocupando diversas pastas em vários governos, foi neste último ano nomeado primeiro-ministro António Maria Fontes Pereira de Melo(1818-1887). Em mais dois governos, ocupou o mesmo lugar de chefe do Governo até 1887. Pertencendo ao Partido Regenerador, foi, como se pode ver por estas datas, uma personagem que ao longo de quase quatro décadas esteve na ribalta da cena política. O seu programa de fomento, de desenvolvimento das obras públicas, nomeadamente das comunicações, ficou conhecido por «fontismo».

Foi o alvo preferido do humor cáustico de Bordalo Pinheiro que, inclusivamente, deu o seu nome a uma das suas revistas «O António Maria». Porquê, esta fixação do genial artista?

No seu editorial de apresentação, «O António Maria» afirmava-se como independente. Dizia «ser oposição declarada e franca aos governos, e oposição aberta e sistemática às oposições». Digam-me lá se esta não é precisamente uma posição lúcida e que, nos dias de hoje, faria todo o sentido? O que não sabemos é se haveria poder de encaixe para aceitar uma revista que se chamasse «O Zé Sócrates»…

Oposição ao governo, que abria estradas, construía caminhos de ferro, pontes, escolas, permanecendo o povo, simbolizado pelo Zé, analfabeto, miserável e desprotegido. Não acham isto parecido com o que hoje se passa – auto-estradas para todos os lugares, projectos de aeroportos e de TGVs, a par com um absoluto desprezo pela cultura, pelo caos na Educação e com dois milhões de concidadãos nossos a viver abaixo do limiar de pobreza? Diplomas distribuídos a esmo (medida espúria para combater estatisticamente o défice de escolaridade), permanecendo dentro das cabeças a incultura e a ignorância, que nos concursos televisivos levam licenciados, mestres e doutores a não saber responder a perguntas básicas de cultura geral. E, nesse caldo de saberes supostamente especializados navegando num soro de quase analfabetismo, navega a semriterna credulidade que leva os eleitores a votar em quem os enganou durante uma legislatura ou, em alternativa, em quem os vai enganar na seguinte.

Enquanto isto, agora como então, uma oposição palavrosa, que condena tudo o que o Governo faz (com razão em quase tudo, diga-se), mas sabendo nós que se algum dia chegar a ser poder fará pior. Ou melhor, não rectificará nenhuma das medidas erradas que este Governo assumiu, acrescentando-lhe outras igualmente lesivas dos interesses da maioria.

Esta oposição, à direita por comprovada ineficiência - PSD e CDS já estiveram em diversos governos e foram autênticos desastres - e à esquerda por demagogia inconsequente, não interessa. O PCP e o BE dificilmente serão governo e, pela sua prática enquanto oposição, vê-se estarem infiltrados de políticos que usam e abusam da demagogia e da chicana. Fazem parte do sistema e do respectivo folclore. Legitimam o sistema. Porque, como Rafael, penso que o mal não é (só) deste partido que se diz socialista. O mal é do sistema. Rafael chamava ao sistema da sua época «a grande porca», referindo-se a política nacional. Ninguém tinha as mãos limpas.

Já sei que, esta expressão, «o sistema», assumiu, até por conotações futebolísticas, o carácter esotérico, por vezes ridículo, de uma teoria da conspiração ao estilo de Dan Brown. Na política e no futebol (a promiscuidade entre ambos é nítida) o «sistema» é identificável e nada tem de esotérico. Cambalachos obscuros, negociatas sinistras, ligações endogâmicas e não só, que desembocam em casas pias, apitos dourados e faces ocultas. Uma «grande porcaria», tal como no tempo em que o nosso herói nasceu.

O nosso Zé Povinho não é um parvo, nem foi uma figura criada pelos interesses da burguesia (embora Bordalo Pinheiro, pertencesse a uma família burguesa) – será crédulo e humilde, manso e céptico, às vezes desconfiado, mas nunca parvo. Resmunga, protesta, mas depois lá vai votar num dos verdugos. Um caso exemplar da síndrome de Estocolmo. O que, sem o ser, pode parecer parvoíce. É uma besta de carga em cima da qual cai todo o peso da desonestidade e da incompetência dos outros, dos tais senhores de fato cinzento ou azul escuro, de gravata e carros topo de gama. Os senhores que mandam no País. Ou melhor - os senhores que servem os senhores que são donos do País. Os capatazes.

Rafael Bordalo Pinheiro, a propósito da mudança alternante de governos disse: «O Zé Povinho olha para um lado e para outro e… fica como sempre… na mesma». Mas como não é parvo, apenas manso e crédulo, um dia a paciência pode esgotar-se-lhe.

E quando o Zé deixa a sua mansidão e credulidade e se zanga, transforma-se num grande problema para quem o tiver atormentado. Aconteceu a seguir ao 25 de Abril de 1974. Pode voltar a acontecer. Depois não se queixem. Entretanto, siga a dança.

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