quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Proust e o jornal, ou Pascal e o anúncio de sabonetes


João Machado


Alain de Botton é autor de vários livros de sucesso, entre os quais How Proust can change your life[1]  e The Consolations of Philosophy[2]. O primeiro está classificado como um best-seller internacional, o segundo, que também alcançou grande êxito de vendas, inspirou uma série de televisão, Philosophy, que julgo que nunca correu em Portugal (se souberem do contrário, digam-me por favor. Acho que em Inglaterra correu no Channel 4). Alain de Botton nasceu na Suíça, mas vive em Inglaterra. Estudou filosofia, que é o seu interesse principal na vida. É um dos responsáveis pela School for Life, empresa cultural que funciona em Londres, e que tem como objectivo ajudar as pessoas a encontrarem o seu caminho na vida através da cultura. Aliás, a sua obra inscreve-se no que se chama a filosofia do dia a dia. As opiniões sobre ele dividem-se, uns gabam-no por conseguir pôr ao alcance do público em geral matérias a que só as elites têm tido acesso, outros censuram-no por não fazer mais do divulgar de uma maneira pomposa aquilo que toda a gente já sabe. Vocês digam-me o que acham do seguinte:

No primeiro daqueles livros Alain de Botton analisa a obra e a vida de Proust, procurando evidenciar o que nos diz sobre a vida, e em especial sobre alguns dos seus aspectos mais relevantes, como encarar o êxito, ser feliz no amor, exprimir as emoções, ser um bom amigo, e outros. E procura fazer o confronto com o que se passa na sociedade em geral, fazendo comentários, muitos deles bastante adequados.

No capítulo três, Como levar o tempo necessário, é abordado um aspecto muito curioso, dos tais que à primeira vista parece que as suas implicações estão bem interiorizadas pela generalidade das pessoas, mas que vendo melhor apercebemo-nos que não é bem assim. É o da rapidez maior ou menor que pomos na observação e descrição dos acontecimentos. Alain de Botton pega na muito famosa extensão que Proust punha na descrição de um assunto, e que chegou a fazer com que um editor dissesse  que não percebia porque seriam necessárias trinta páginas para alguém descrever as voltas que dava na cama antes de adormecer, e confronta-a com a brevidade com os jornais tratam assuntos muito graves do dia a dia, comprimindo histórias que poderiam encher muitos volumes em colunas estreitas, em competição umas com as outras.

Alain de Botton apresenta o testemunho de um amigo de Proust, de que este lia os jornais de uma ponta a outra, incluindo as breves, anúncios, tudo. A seguir transformava as notícias, com a sua imaginação, em romances trágicos ou cómicos. Um dia deparou-se-lhe uma notícia breve sobre o assassinato de uma mãe pelo filho, que se suicidou de seguida. E reconheceu no assassino um seu conhecido. Proust escreveu sobre o caso um artigo de cinco páginas, inserindo-o num contexto mais vasto, e tratando-o como uma manifestação de um aspecto trágico da natureza humana, que tem estado na origem de muitas obras de arte desde o tempo dos gregos. Comparou o amigo ao Ajax da mitologia, fez referências ao rei Lear, e no fundo fazia aproximações a outras situações em que, embora de outro modo, causamos sofrimento aos idosos que nos são próximos.

Alain de Botton com o reparo de que a transmissão da experiência humana é muito susceptível à abreviação, é fácil destituí-la dos sinais mais óbvios que nos levam a atribuir importância a algo. Para ilustrar este ponto apresenta-nos três notícias breves:

  • Fim trágico para dois namorados de Verona: depois de, por engano, julgar a sua amada morta, um jovem pôs fim à própria vida. Tendo descoberto o destino do apaixonado, a mulher suicidou-se.

  • Na Rússia, uma jovem mãe atirou-se para debaixo de um comboio e morreu devido a problemas domésticos.

  • Uma jovem mãe tomou arsénico e morreu numa cidade francesa de província devido a problemas domésticos.

Aqui, Botton diz que o talento artístico de Shakespeare, Tolstoi e Flaubert tende a sugerir que os personagens Romeu e Julieta, Anna Karenina e Emma Bovary teriam algo de relevante que faria com que qualquer pessoa percebesse que eram dignos da grande literatura, ou de um teatro famoso, embora nada em princípio distinga estas notícias sobre eles de outras, estas reais, que ele apresentou na sua análise, para confronto. E a seguir cita Proust, quando este afirma que o valor das obras de arte não tem nada a ver com a aparente qualidade do seu tema, mas com o tratamento posterior que lhe é dado, e que tudo é potencialmente um tema fecundo para a arte, podendo-se fazer descobertas tão valiosas num anúncio de sabonete como nas Pensées de Pascal.


[1]  A tradução portuguesa foi publicada pela D. Quixote em 2009, com o título Como Proust pode mudar a sua vida.
[2] Tradução portuguesa de 2001 publicada pela D. Quixote, com o título O Consolo da Filosofia.

2 comentários:

  1. Se levarem quem nunca leu Proust a descobri-lo, valem a pena as páginas do senhor De Botton. Mas se o mundo é dos espertos, a edição é hoje em dia dos fazedores de manuais de auto-ajuda.

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  2. Creio que já deixei a meio um livro desse autor que me estava a entediar. Não me lembro agora do nome.

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