quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Que República!?

José Brandão

Desde os primeiros dias do novo regime saído da revolução de 5 de Outubro de 1910 que os principais dirigentes republicanos eram vistos com preocupante desconfiança por um cada vez mais numeroso lote de críticos, de indiscutível autoridade e de comprovado passado histórico.

Poucos ou nenhum dos grandes nomes que vão assumir a condução da República em 1910 irão conseguir escapar ilesos a uma das mais formidáveis e avassaladora vaga de ataques de que há memória num regime de colegialidade governativa. Nuns casos mais justos, noutros não tanto, toda essa avalanche acusatória acabava desgraçadamente por ter sempre alguma razão de ser.

Uma paciente e interessada observação do que foram alguns desses intermináveis clamores de reprovação pode dar ideia da «doença infantil» que terá atingido, logo à nascença, a República portuguesa.

A começar precisamente pelo pai, fundador, implantador, herói e tudo o mais que se entenda para o papel de Machado Santos em 5 de Outubro de 1910, a sua República morreu quase antes de ter nascido.

O Governo que acompanha a proclamação solene da República, do alto das varandas da Câmara Municipal de Lisboa, põe logo indisposto o comandante revolucionário. Estava quase todo trocado. Ainda durante a manhã do dia 5, Machado Santos volta para junto dos seus carbonários na Rotunda, e, não fora a feliz ideia de Brito Camacho de promover a ida do novo Governo ao acampamento do alto do Parque Eduardo VII, talvez as comemorações da Revolução republicana não fossem hoje exactamente no dia 5 desse mês.

Os homens que haviam sido promovidos a Governo Provisório da República, uma inacreditável colecção de mediocridades glorificadas, representavam várias tendências dentro do PRP, tinham opiniões diferentes sobre o que devia ser o novo regime e nem sequer especialmente se estimavam. O Governo Provisório não era um Ministério no sentido usual da palavra, isto é…, não era formado por um grupo de pessoas com ideias comuns ou, pelo menos, um programa comum. O presidente, o filósofo, historiador, crítico e sociólogo Teófilo Braga, «não passava de uma nulidade política, ali posta com propósitos puramente decorativos.»

«Um tronco ressequido, que nunca deu flor!» — dizia Guerra Junqueiro.

Afonso Costa que mereceu de Fernando Pessoa classificações como: «José do Telhado de revenda». «O perfeito tipo de salteador político». «Um dos maiores bandidos que têm aparecido à superfície da política lusitana». «Um escroque-nato, uma besta, um piolho da política, um tirano de caca, comparado com João Franco, que seria um tirano de merda».

Pessoa nunca fora muito dado a grandes simpatias pela causa republicana. Afora a sua adoração por Sidónio Pais — a quem chama de «presidente-rei» — o poeta da Mensagem não poupa o regime de 5 de Outubro de 1910. Para Pessoa «A situação em Portugal, proclamada a República, é a de uma multidão amorfa de pobres-diabos, governada por uma minoria violenta de malandros e de comilões.»

Infelizmente para a República e para Portugal não era só Fernando Pessoa que pensava desta maneira. Longe disso. Se Pessoa podia ser distante desses ideais, outros, a que ninguém podia pôr em causa o seu verdadeiro republicanismo, condenaram de forma não menos contundente os caminhos porque enveredava a I República portuguesa.

Magalhães Lima, por exemplo. Numa carta que em 1923 escreve a Teófilo Braga diz de sua justiça: «Os meus princípios de filosofia política, decerto um pouco radicais, evidentemente excedem a orientação dada à República, que nem é a dos insignes enciclopedistas de 89, nem a dos grandes homens de 48, nem sequer a que lhe imprimimos em 5 de Outubro de 1910.»

Aos olhos de muitos e grandes nomes da luta histórica pelo ideal republicano, isto já não é República não é nada:

— É uma bacanal de percevejos num colchão podre — Diz Guerra Junqueiro, gigante incomparável da propaganda revolucionária durante os anos da Monarquia. — Afora meia dúzia, o resto devora. Os homens são cada vez pior, cada vez mais pequenos. Tirem-lhes a política e ninguém dá por eles — acusa o poeta, cansado e desiludido com um rumo que tem já destino inevitável para uma esperança de tantos anos.

— A Monarquia, nesta altura […], seria de fugir... E a República? A República — diz Junqueiro — não se atura nem se pode aturar!

Não temos estadistas, não temos políticos... — reclama, em conversa com Lopes de Oliveira, que interpõe:

— Mas quem sabe se.

— Não, não; o peixe anda na água; se não aparece, é que o não há.

Mais perto do nosso tempo, Eduardo Lourenço escreve sobre a I República. Em Portugal como Destino, publicado em 1999, expõe o seguinte: «O triunfo da primeira República, em 1910, a ter durado mais que os seus escassos dezasseis anos, e pelo simples facto de ter posto fim a uma Monarquia de oito séculos de existência, merecia — outros dizem merece — aceder a um estatuto mítico, ser uma referência profunda e íntima da memória nacional»

[…]

«Sem dúvida que o assassinato do rei D. Carlos e do herdeiro do trono, D. Luís, em 1908, num povo tão sentimental como o português não contribui pouco para esse obscurecimento da República. Curiosamente, sem que a Monarquia ou a sua lembrança beneficiassem com isso. Portugal é um povo de longa memória (historial), mas sem memória profunda. O regicídio provocou naturalmente, uma grande emoção. Os assassinatos reais eram moeda corrente na época numa Europa que não sabia que caminhava para a catástrofe. Mas, na nossa história, esse género de dramas pareciam copiados de outros, ininteligíveis. Tiveram consequências políticas, mas não tinham conteúdo político.»

E, falando também de Sidónio Pais, o autor do notável livro O Labirinto da Saudade, acrescenta: «A República democrática, como se fosse uma pequena Weimar, sonha com uma nova ordem. Em 1918, o primeiro de uma longa série de «caudilhos» dispostos a porem ordem na «desordem» europeia estabelece uma breve ditadura em Portugal. Chamava-se Sidónio Pais e, talvez por ter sido assassinado um ano depois, transformou-se num dos raros personagens lendários da medíocre história portuguesa deste século. Uma vez mais ressuscitou-se nele o espectro regenerador de D. Sebastião. Deste, tinha a coragem e o garbo. Adorado pelas mulheres, em plena aurora do cinema, foi a primeira star da nossa moderna mitologia. Suscitou paixões, de nítido fundo anti-republicano e pré-ditatorial. Para que nunca mais fosse esquecido, entusiasmou Fernando Pessoa, que nunca morreu de amores pela «democracia à portuguesa».

[…] «A sua maneira, a República foi para muita gente, sobretudo poetas, um acontecimento «sebastianista». Uma nova era se abria para Portugal. O jovem Pessoa, o próprio Pascoais, tiveram o seu momento «republicano». Portugal descera, com as últimas convulsões da Monarquia, a uma situação dolorosa e intolerável. Era necessário resgatá-lo, não dos seus maus pastores (como dissera Guerra Junqueiro), mas de si mesmo. A ideia de que Portugal, tendo percorrido a senda da sua decadência, para não dizer da sua expiação, devia e estava em condições de renascer tornou-se uma ideia fixa das novas gerações.»

Com 45 Governos em menos de dezasseis anos e tanta tragédia a persegui-la, a I República ficaria para a História como o regime parlamentar mais instável da Europa ocidental.

Começou pela morte de um rei (D. Carlos) que deixou um político (João Franco) governar como queria. Viu matar um presidente (Sidónio Pais) que não quis que os políticos governassem como queriam. Assistiu ao assassinato de um governante (António Granjo) que não deixaram que governasse como lhe cabia.

Era um monarca tutelar mas constitucionalista na sua essência. Era um presidente ditatorial mas o único que foi sufragado por voto popular. Era um chefe de Governo odiado mas que pela segunda vez era solicitado a formar Ministério.

Era, era, era…

Era Portugal. É Portugal!

1 comentário:

  1. É bom que se escrevam destas coisas. A República não foi nenhum milagre para o povo português, mas mais do mesmo com nova embalagem. Por isso cá estamos hoje a papar a mesma receita com a democracia à portuguesa.

    ResponderEliminar