quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Questões e alternativas

Carlos Loures

Em 1984, um grupo de amigos produziu e editou a revista Questões e Alternativas da qual se publicaram quatro números. Era tudo gente de esquerda, em geral oriunda de partidos extra-parlamentares. As Questões e Alternativas, pode dizer-se,é uma iniciativa ligada á protohistória deste blogue, pois muitos dos nossos actuais colaboradores estiveram na sua base.

No chamado núcleo duro do projecto, o Carlos Leça da Veiga, médico, o Rui de Oliveira, médico também, a Augusta Clara Matos, bióloga, o Jaime Camecelha, bancário e dirigente cineclubista, o Bruno da Ponte, editor, a Clara Queiroz, professora da Faculdade de Ciências de Lisboa, o João Machado, sociólogo, o Pedro Godinho, ainda estudante de sociologia e este vosso amigo. Como se pode ver, são nomes que, na sua maior parte, estão ligados ao Estrolabio


Como já disse, orria o orwelliano 1984. Não se vivia a realidade distópica que o escritor irlandês criara na sua famosa ficção, mas vivia-se um tempo de difícil transição, de ajustamentos, de receios com fundamento. O socialismo real afogava-se no vómito dos erros cometidos, de numerosas traições ao espírito solidário e fraterno do comunismo, dando lugar a uma coisa a que chamaram o «socialismo em liberdade», mas que todos sabíamos querer dizer "capitalismo à solta".  Eanes ia, de hesitação em inacção, cedendo passo ao bloco central que chegava através de Mário Soares.

Tínhamos uma numerosa e vistosa plêiade de apoiantes para as nossas iniciativas, mais de uma centena. de onde destaco os nomes de Alberto Galvão Teles, professor universitário, Carlos Paulo, actor, Fausto, músico, Filipe Rosas, médico, José Afonso, músico, Manuel Simões, professor universitário e também nosso colaborador, Santos Manuel, actor, Viriato Teles, jornalista e muitos outros. Além da publicação da revista, organizámos bem sucedidos debates no Centro Nacional de Cultura, com nomes como Pezarat Correia e Eduardo lourenço, por exemplo.

Tínhamos também um objectivo ou, talvez melhor, um sonho – unir a esquerda. Uma esquerda fragmentada por pormenores ideológicos que cada vez faziam menos sentido. No Portugal dos anos oitenta o que interessava aquilo que Lenine, Trotsky, Mao Tse.-Tung ou Enver Hodja tinham dito décadas antes, em contextos sociopolíticos que nada tinham a ver connosco? Mas não conseguimos - o sectarismo estava profundamente enraizado.

Éramos não-alinhados, na ordem interna e na externa, pois a dicotomia NATO -Pacto de Varsóvia não se extinguira ainda e o não-alinhamento, pese embora as posições assumidas por países como a Índia e a Indonésia começassem a fazer prever que o movimento internacional começado em Bandung não ia arribar a bom porto. Chegámos a criar uma Associação da Esquerda Portuguesa Não-Alinhada (AEPNA) cujos estatutos foram publicados em Diário da República.

Nos quatro números das «Questões e Alternativas» publicámos alguns textos que ainda hoje me parecem muito interessantes. No primeiro número, no editorial, dizia-se que «como de médico e de louco, todos temos um pouco», nós nos sentíamos tentados a prescrever uma receita para as incontáveis doenças que afligem o País. E, na realidade, nas mais de 200 páginas que os quatro números somam, receitámos que nos fartámos. Sobre o conceito de democracia, sobre a política energética do País, sobre as questões ambientais (o Pedro Godinho escreveu um belo artigo - "Verde que te queroi verde"), as justas reivindicações femininas (com a Clara Queiroz e a nossa Augusta Clara a escreverem um  texto vibrante),  a propósito do debate que então se travava sobre o aborto…

E, naturalmente, falávamos sobre política internacional – a Nicarágua, o Chile, a África Austral – e um problema que ainda hoje constitui preocupação – Aquilo a que chamámos «as colónias da Europa»: começámos com a Irlanda, no quarto número, e íamos continuar com a Catalunha, a Galiza, o País Basco, as numerosas colónias europeias do império russo, as nações sufocadas pela Sérvia (nesta área, pontificava o Carlos Leça da Veiga).   Acabávamos sempre com uma secção de pequenas notícias nacionais - «Nós por cá (quase) todos mal». E em todos os números se alertava para os perigos de uma ditadura do «bloco central». No número 3, perguntávamos: «Com Soares – um segundo fascismo?».

Como quase sempre acontece, levantámos mais questões do que as alternativas que apresentámos. O que é curioso é a actualidade da maioria dos textos – muitos deles poderiam ser publicados com pequenas alterações de pormenor. Porque as principais questões que levantávamos permanecem sem resposta e, muitas vezes, sem alternativas ou com falsas e demagógicas alternativas. Aqui estamos quase todos, vinte e seis anos depois.

1 comentário: