sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Recordando José Afonso

Carlos Loures


Desde o princípio dos anos 60 que se ouvia falar no José Afonso. Os discos foram aparecendo, as canções começaram a ser conhecidas e por meados da década o Zeca já era famoso.

Quando em 1967, com o Manuel Simões e o Júlio Estudante, criámos em Tomar onde trabalhava e vivia, uma pequena editora, a Nova Realidade, fizemos questão de iniciar a actividade com um livro do Zeca, os «Cantares». Além das duas edições dos «Cantares» que se esgotaram, publicámos em 1970, um segundo livro «Cantar de Novo».

Portanto, o Zeca não me conhecendo pessoalmente, sabia bem quem eu era.. Entretanto, deixei Tomar, fui para Lisboa em 1971. Deu-se o 25 de Abril e na tarde do 11 de Março de 1975, na sequência do golpe de direita, que todos supúnhamos de maiores proporções, desloquei-me a Setúbal em missão política, digamos. Quem vejo eu parado na estrada, boina basca, mãos nos bolsos? – o Zeca (na altura, ligado à LUAR). Arrumei o carro e fui falar com ele. Apresentei-me. Não perdeu muito tempo com cortesias, aviou-as rapidamente:

- Estás porreiro?… Trazes armas? – esperava-se para breve uma nova ofensiva da direita. Eram cerca de três da tarde e não sabíamos que a operação «Matança da Páscoa», o culminar da conspiração spinolista, se tinha limitado ao ataque naquela manhã ao Ralis e a pouco mais. A bem dizer, esperava-se «a ofensiva», talvez até a invasão de forças espanholas. A canção «O que faz falta» foi repetidamente passada nas estações de rádio. Fora gravada nos últimos meses do ano anterior em Londres e, por certo, inspirada noutra intentona de direita - no 28 de Setembro de 1974 – a manifestação da «Maioria silenciosa», liderada por um dos homens da Junta de Salvação Nacional, o general Galvão de Melo. Voltando ao encontro em Setúbal, tomámos nota dos respectivos endereços e números de telefone e despedimo-nos com um abraço.

Depois, pelo tempo fora, encontrámo-nos por numerosas ocasiões, em reuniões políticas e não só. Durante a campanha do Otelo, em 1976, por exemplo, encontrámo-nos por diversas vezes. Quando do II Congresso dos Escritores Portugueses, em Março de 1982, ficámos lado a lado e almoçámos sempre juntos, durante os três dias, num pequeno restaurante da Conde de Valbom, em frente do muro da Gulbenkian, onde se realizaram os trabalhos do congresso. Num desses almoços esteve também, além de nós os dois, a escritora e saudosa amiga Maria Rosa Colaço. Era uma amiga comum. Privara com o Zeca em Moçambique.

Estivemos pela última vez, já ele estava muito doente, salvo erro em 1984, numa reunião destinada a dar voz a uma opinião que alguns «não-alinhados» perfilhavam sobre um tema candente . O jornalista Viriato Teles refere-se a essa reunião num texto (“Saudades do Zeca”): Em plena «crise de Gdansk», com o sindicato Solidariedade de Lech Walesa a tornar-se o pólo de todas as atenções, houve em Portugal uma escassa meia centena de cidadãos lúcidos, de vários quadrantes políticos e sociais, para quem a razão não estava nem do lado dos apoiantes nem dos detractores da alegada «central sindical» polaca. O Zeca era um deles, e foi quem me desafiou para reunir (com o Fausto, o Carlos Loures, o Orlando Costa e mais uns quantos malandrins) em casa do Carlos Leça da Veiga para a elaboração de um documento a que chamámos «Que a lição da Polónia não seja em vão» . Texto que, como o Viriato Teles assinala, assinado por uma meia centena de cidadãos, não teve grande divulgação – foi publicado na revista “Questões e Alternativas”, de que aqui já falei, e lido nos espectáculos de “A Barraca”. Nessa reunião, o Zeca denotava já uma impaciência que não lhe era habitual. Ainda falei com ele telefonicamente umas duas ou três vezes

Contavam-se muitas histórias sobre a distracção do Zeca. Como, por exemplo, numa manhã de domingo foi com os filhos, ainda pequenos, ao jardim, os pôs a brincar nos baloiços e no escorrega e depois, pouco antes do almoço, sempre imerso nos seus projectos, chegou a casa sem eles. Perante a aflição da mulher, voltou correndo ao parque e lá estavam, felizes, brincando.

Ou como, à mesa do café, trauteava uma melodia que criara, perguntando aos amigos se aquela música já existia, respondendo eles sempre, com amistosa ironia, que sim. Ou ainda, quando as salas multiplex eram ainda novidade, com a Zélia, e com o casal Bruno da Ponte e Clara Queiroz, foram ver um filme. No intervalo, saiu e quando o intervalo acabou o Zeca entrando por engano noutra sala, viu a segunda parte de um filme diferente. A Zélia e os da Ponte, pensaram que ele se fartara do filme e os esperava no átrio. Esperava-os de facto, mas com esta observação: «Não vos encontrei na sala. Mas estes filmes de agora… não percebi nada da história».

Por diversas vezes me contaram episódios das atrapalhações quando, a meio de uma actuação, o Zeca se esquecia da continuação da letra. Parava tudo, ele encontrava o papel e lá se recomeçava. Distraído o Zeca? Sim. Mas, ao mesmo tempo, muito atento à realidade do seu tempo. Seria uma grande injustiça que nós nos distraíssemos e que esquecêssemos um artista e, sobretudo, uma pessoa como José Afonso.

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