terça-feira, 5 de outubro de 2010

Respeito

Marcos Cruz

Muitas vezes me questiono sobre o poder mágico da morte, a capacidade que ela tem de mudar a opinião dos homens uns sobre os outros, ou pelo menos de condicionar a expressão dessa opinião. Sempre que um insulto se transforma num elogio, tendo a considerar que, aos olhos do emissor de tão opostos juízos, a pessoa sobre a qual eles recaem fez alguma coisa de positivo, produziu um bem passível de a redimir do mal anterior, ou de o atenuar, vá lá. Penso, então, se a morte de alguém que repudiamos será, para nós, esse feito elevado à sua potência suprema, se a borracha que apaga a existência física de uma pessoa tem o condão de apagar também todas as memórias negativas que dela fomos acumulando, como um processo que prescreveu e em relação ao qual não há já nada que nos prenda. Talvez o raciocínio seja: este não chateia mais, portanto vamos poupar quem gosta dele a mais chatices. Eu, no entanto, não descarto a possibilidade de, em muitos casos, aqueles que gostam das pessoas que morrem preferirem ouvir, na morte dessas pessoas, serem-lhes atribuídas pelos outros as virtudes e os defeitos que os mesmos lhes atribuíram em vida, isto pensando, em primeiro lugar, no morto, que, enquanto vivo, teve uma conduta que, se não agradou a gregos e a troianos, foi porque não tinha de agradar, ou até porque não queria agradar. Daí que rasurar o que subjectivamente cada um de nós entende como pecado de uma pessoa na hora do seu falecimento possa equivaler a mutilar a memória dessa pessoa, a bombardear o edifício que ela construiu em vida. Mais do que proferir banalidades e, por vezes, derramar hipocrisia, como cal, sobre o ser que se desmaterializa, talvez respeitá-lo seja tratá-lo na morte como ele fez por ser tratado em vida, reconhecer viva a sua marca, inteira. É que um homem pode ser parte do todo, mas há um todo que é parte dele - e o que parte dele, na morte, é o que menos lhe pertence.

(ilust. Adão Cruz)

2 comentários:

  1. Concordaria contigo se não tivesse tido já uma má experiência a esse respeito. Houve quem tivesse ficado tão ofendido logo à primeira frase que nem me deixaram acabar o discurso sobre a defunta em questão, a quem eu ia apontar igualmente o que nela me agradava, e praticamente me tenham deixado de falar.

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  2. O problema aí, contudo, não terá sido teu. Mas eu refiro-me àqueles a quem são pedidos pareceres sobre quem morre. Nomeadamente figuras públicas que falam sobre outras de quem, em vida, praticamente só disseram mal. Aquela coisa do "foi uma perda enorme para a ... [consoante a área de actividade] portuguesa", quando a mesma pessoa no dia anterior teria dito, por exemplo, que pessoas como o então ainda vivo faziam mal ao País. Ou seja, estou a falar de uma hipocrisia não apenas legitimada como institucionalmente preconizada. Uma falta de vergonha. Mais uma vez te cito o verso do Pessoa: "Morrer é só não ser visto".

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