sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Senhores Singulares -( O romance da revelação do Brasil)- 11 - por Sílvio Castro

(Continuação)

Antônio Fragoso I



Vossa Senhoria,


é muito difícil falar de Antônio Fragoso, pois não consegui jamais saber o que se passava com ele, quais eram os seus pensamentos. A única verdade é que ele não queria viver conosco, já que vivia como se odiasse o mundo inteiro. Antônio Fragoso, agora que tudo acabou e já nada pode ser feito por ele, sempre viveu fechado em si mesmo. Por isso, seu rosto era de uma dureza que não se entendia e seus olhos pareciam sempre acesos. Se o demônio alguma vez conseguiu possuir um homem, ele tomara conta de Antônio Fragoso.

Talvez a melhor maneira para procurar dar um retrato verdadeiro dele a Vossa Senhoria será retomar na recordação mais isenta possível os seus comportamentos diante das duas questões que logo abalaram a nós todos nesta terra nova, a nudez da gente e a liberdade da pratica do amor por parte das raparigas daqui.

Ah! Vossa Senhoria quer saber dessas mesmas coisas também quanto a José Pacheco e João Osório? Está bem; responderei à vossa justa curiosidade. Porém, como sou lento no pensar e relembrar, e preciso de Vossa Senhoria para compor todo esse enredo que está tomando corpo, responderei com ordem. Primeiro cuido de Antônio Fragoso.

Logo naquele primeiro dia do nosso exílio, ele mostrou-se como era e sentia. Eu ficara na praia chorando na solidão em que me encontrava e minhas lágrimas aumentavam com o lento diminuir das naves de Pedro Álvares no horizonte sul. Por horas ali fiquei assim chorando, rodeado por dezenas e dezenas daqueles novos companheiros de uma vida não procurada e que agora corriam alvoroçados, com cantos e risos, por todas as direções.

Antônio Fragoso entretanto não ficara na praia. Taciturno como sempre, ele entrara pelo bosque a dentro. Somente mais tarde, quando a gente nos recolheu e nos conduziu para o interior da aldeia, é que ele se mostrou vivo. Juntou-se, arredio, ao nosso grupo, e quando nos indicaram no final da aldeia a cabana que a partir de então seria a nossa casa, foi logo entrando nela, sem esperar por mim e pelos jovens aventureiros, Pacheco e Osório.

Antônio Fragoso entrou na cabana e tomou para si a melhor rede, nela logo distendendo-se. Assim ficou por longo vasto tempo, sem nos falar e nem mesmo dignar-nos de um olhar.

A nossa cabana era igual a todas as demais, somente um pouco menor. O chão batido era muito limpo, como se tivesse sido vivido pouco antes por outras pessoas. O frescor da terra se irradiava do chão e se filtrava pelas paredes e pelo teto recoberto de palmas. No centro da cabana, uma grossa haste de sustentação do teto liga-se a outras hastes menores colocadas nos ângulos da habitação. As redes partem da haste central e se dirigem para as diversas hastes menores. Cada um tomou para si uma rede. São feitas - não sei se Vossa Senhoria já as observou bem - de finos vegetais, muitas vezes parecidos com o linho - bem trabalhados, entrelaçados e firmes. Os entrelaçados que formam essas redes fazem pensar a quanto tempo levam as mulheres para as fazerem. Na rede tudo acontece e quando deve servir a um casal, são mais largas. Tudo aqui é muito interessante, pois tudo é de todo o mundo e ninguém briga por um objeto, nem para comer mais da caça ou da pesca. O dar as coisas é a regra.

Antônio Fragoso desde o primeiro dia pouco se unia a nós. Preferia viver isolado, sempre escondido ou a passear sem rumo aparente pela mata. O seu modo de viver logo surpreendeu aquela gente, pois eles não compreendem a escolha da solidão por parte de alguém que vive na aldeia. Antônio Fragoso se esquivava de todos e de tudo, mas era sempre visto a espreitar em meio ao cerrado das árvores e das plantas. Assim fazia principalmente junto dos rios onde tomavam banhos homens e mulheres. Muitas vezes ele era visto que surdia de um cerrado como se escapasse de alguma coisa. Depois se via que de lá também saia uma das raparigas da aldeia. Ele não a esperava jamais.

Era muito estranho Antônio Fragoso. Pouco falava com os homens jovens e até mesmo parecia que os evitava. Assim também com as mulheres velhas, das quais escapava como se delas tivesse um grande medo. Mas via-se que ele não sabia e nem podia sofrear a curiosidade pela nudez das raparigas. Essas, no início, riam muito da insistência de Antônio Fragoso e com ele muitas vezes brincavam com evidentes alaridos. Porém, com o passar do tempo e com a insistência que depois se fazia prepotência, elas passaram a fugir dele.

Antônio Fragoso II

Em determinado momento não encontramos mais Antônio Fragoso na nossa cabana. Depois de alguns dias de ausência, ele apareceu na parte mais distante do terreiro da aldeia, parado, em silêncio, debaixo de uma árvore de muitos metros de altura. Antônio Fragoso olhava de longe a azáfama quotidiana da gente e esses não davam muita importância ao silencioso observar dele.

Depois ele se levantou e vimos que entrava no bosque. Fomos lá olhar. Ali estava Antônio Fragoso defronte a uma pequena cabana isolada entre árvores e arbustos que ele construira rusticamente imitando as cabanas verdadeiras. Dali não mais saiu.

Antônio Fragoso se mostrava só de quando em quando. Principalmente nas oportunidades em que a gente festejava alguém ou alguma coisa na aldeia: no meio do terreiro então todos se encontravam a bailar, cantar e a beber a aguardente forte que eles fazem de uma raiz ou planta que depois Coaracy me disse chamar-se manioca. A bebida parece com a nossa aguardente e é igualmente forte. Outras aguardentes eles o fazem de frutas, que as há muito nesta terra, mas a preferida é a da raiz. Os homens recolhem da terra plantada essa manioca que depois limpam com grande cuidado. Aquelas que não são destinadas a serem comidas assadas, passam às mulheres da aldeia, em geral às mais velhas, que preparam a bebida. Nessas festas está no meio do terreiro um grande pote de barro cozido que bole sem cessar, num fogo forte. O líquido da manioca rebole sempre e as velhas recolhem em potes menores a aguardente que depois passa sem cessar para os convidados da festa.

Antônio Fragoso bebe muita aguardente na festa. E então vira outro homem, canta, dança sem parar. Ninguém o refreia e ele bebe, bebe sempre.

Como em todas as festa da gente daqui, tudo vai até o amanhecer. Com as primeiras luzes do dia, a gente se recolhe nas cabanas, porém muitos, homens e mulheres, ficam derreados no terreiro. Assim fica sempre Antônio Fragoso.

Antônio Fragoso III

Um dia que já se fazia noite, do meio da mata sairam muitos gritos de mulher que aumentavam e se aproximavam. A gente toda correu para o largo da aldeia e viu aparecer da mata uma das raparigas entre as mais jovens, Ara, amiga de Tainá. A gente viu Ara que corria, corria e gritava sem parar. Espantada, ela corria para o terreiro quando, do cerrado, correndo atrás dela apareceu Antônio Fragoso que gritava e imprecava. A gente via ainda de longe Antônio Fragoso que uivava como uma onça pintada e queria pegar a rapariga que fugia. Ara correu mais e entrou no terreiro. Atrás dela, como uma fera bestial, Antônio Fragoso surgiu todo nú. Gritava como se fosse de dor. Estava nu, braços abertos na corrida. Diante de todos apareceu Antônio Fragoso que uivava e se contorcia, tentando esconder o caralho que se fizera o dobro do normal, sempre erecto e sanguinolento.

(Continua)

























Eu quero, em meio a essas minhas estórias, que Vossa Senhoria saiba como estou contente em vos servir de intérprete com a gente daqui que tanto interessa a Vossa altíssima atenção. Acredito que todos os grandes trabalhos de conhecer e nomear os fatos desta terra nova serão muito acrescidos com o conhecimento também da sua gente. Já o bom e sábio Pero Vaz me dizia naqueles dias, poucos, em que estivemos juntos aqui, que a gente era a maior riqueza dessa terra, mais do que ouro e prata que porventura se pudesse encontrar nela. Eu agora tenho a certeza disso.

Mas queria poder fazer mais de quanto faço para satisfazer a vossa justa curiosidade. As experiências e os conhecimentos que até hoje tenho vivido, seja quanto à gente, seja em relação à terra, eu as desejaria maiores ainda, isso para poder responder a todas vossas sábias perguntas. Quando vos transmito o que os meus novos amigos vos dizem e a eles o que vossa sabedoria espera de conhecer, me sinto muito feliz por poder usar esse pouco da língua deles que me foi possível aprender nesses longos três anos. Ou foram mais? Já quase não sei a dimensão do tempo, pois esse meu novo me parece completamente diferente daquele outro, e nele como que flutuo como se fosse feito de uma outra matéria, que não dessa minha mísera carne.

Me surpreendo, entretanto, porque noto em Vossa Senhoria uma grande satisfação pelo meu desempenho como língua. Por isso, acrescento ao pouco de certeza de saber em que sempre vivi, ao muito que Vossa Senhoria me enriquece dando-me a satisfação de compreender aquele tanto que agora sei que existia na grande nebulosa que era a minha cabeça diante dessa bela e rica língua.

Que grande misterio é poder aprender uma nova língua partindo das sombras do nada! Como é emocionante passar desse nada que esconde todo um mundo, para uma lenta, difícil tomada desse mundo! Me desculpe se falo assim, mas não posso conter minha alegria.

Coaracy, que tudo me tem ensinado, desde logo dizia que precisa abrir os ouvidos, os olhos e os braços para acolher as muitas palavras que nomeiam o mundo e a vida. Ele me chamava a atenção principalmente para as palavras que dão a vista do mundo. Logo relembro Coaracy é luz, mãe da luz. Porém, digo a Vossa Senhoria, no meio, tudo foi muito difícil. Era para mim alguma coisa maior de mim mesmo. Eu não sabia como remover dos meus olhos a grande muralha que levantaram diante de mim com tal missão. Desde aquele dia que o meu Comandante Pedro Álvares me mandou descer à terra e aprender a língua e os costumes da gente nova, eu me senti como um mudo que quer falar e não pode balbuciar nem mesmo a menor palavra. Aquela muralha me comprimia e me sufocava desde aquela primeira vez que me misturei com eles, com os seus falares, gestos, risos, brincadeiras, zangas que eu sentia, escutava, devorava com os olhos, mas que me pareciam sons distantes. Eu me sentia sozinho então como se um grande silêncio corresse pelas areias brancas das praias, subissem pelas primeiras palmeiras, se misturasse com o vento e entrasse pelo sertão pressentido por detrás da floresta impenetrável.

Foi Coaracy quem me libertou da muralha.

Então comecei a nomear com ele o novo mundo.

Coaracy me ensinou que cada coisa tem o seu nome e que nós podemos com o nome conhecer as coisas e todos os mistérios que nelas existem. Mas, Vossa Senhoria deve saber, não foi assim logo. Tudo aconteceu lentamente, como o correr das águas no rio tranquilo. Porém, com cada vez maior certeza.

Aprendi com Coaracy que eu devia romper a muralha, dando confiança a tudo o que eu sentia e não querendo saber do que as palavras novas eram, sem removê-las dali para longe, para aquelas terras, aquelas estórias, cantos, vozes que eu deixara longe e para sempre. Que me contivesse no desejo de compará-las às doces palavras que escutei de minha mãe, minha doce mãe, nos dias felizes de minha infância.

Coaracy assim me dizia enquanto repetia com a voz de serenidade as palavras de um mundo encantado.

Tudo está ligado ao mundo: aos homens, aos animais, às plantas, à terra, ao sol e à chuva, à lua e às estrelas todas; à agua, ao fogo, ao ar que o circunda; e também aos espíritos. Coaracy nomeava o mundo e eu seguia a sua voz de encontro, cada dia maior, com esse mundo. No início o encontro é feito de sobressaltos, porque depois que pensaste de o ter encontrado, te sentes como antes, sem saber das coisas. Mas, logo depois, te recuperas e novas partes da muralha caem.

A deles é uma língua bela, desde logo disso soube. Por tal razão, fui ao seu encontro como à revelação de uma parte escondida de mim mesmo. Vossa Senhoria, a propósito, considera que apreender uma outra língua é como renascer? Assim acontecia comigo quando passei a nomear com as palavras de Coaracy este mundo. Então me recordei do doce acalanto que era a voz de minha mãe. Comecei a passar os dias sentindo-me feliz, quase a esquecer as mágoas da minha desgraçada existência.

Chovia, e eu pensava a Amanaci, a mãe da chuva que caia sobre as árvores, embebia o terreiro e tocava uma doce musica nos telhados de palmas. Mas, também ao belo passarinho que antes da chuva cantava e a anunciava. A chuva enche de palavras as minhas novas experiências. Gosto muito da chuva; é por isso que logo gostei do amanamanha, o sapo que se faz escutar somente antes da chuvarada. Mas, gosto também de tatá, o fogo. Muitas vezes caminhando pelo bosque, rente ao correr dos rios, eu repetia tatá tatá tatá. E dali vinham outras palavras, que se uniam e se transformavam em outras ainda. Coaracy me contara que existia uma cobra - que eu ainda não vira - feita de fogo: boitatá.

Existem coisas alegres e coisas tristes, coisas boas e coisas ruins. De panema eu nomeio coisas ruins ou gente infeliz no que faz. Se encontro uma grande extensão d'água que me dá a sensação de bondade: ipanema. Com água < i > posso nomear meio mundo, e com a força pedregosa de < ita > e com o quente sentimento da casa . E se quero saber o caminho de uma casa < ocara >. Assim fazendo, Coaracy, sem mostrar-se surpreso me diz que não muito distante daqui existe um outro povoado da sua gente chamado Itaocara, e que passadas algumas luas toda a nossa aldeia está convidada para la ir, para uma grande festa.

Eu sei que Vossa Senhoria está percorrendo a longo estas costas para nomear montes praias promontórios cabos arrecifes ilhas rios, lugares vários. Se Vossa Senhoria me consente, eu pediria que ao lado dos nomes que dará a essas terras, nomes derivados da nossa santa Fé, também ficassem nos marcos e mapas os nomes daqui. O nosso Comandante chamou a nova terra, Terra de Santa Cruz, e assim deve ser. Mas acredito que muitos nomes usados aqui e ali por essa gente nossa amiga também poderão fixar a memória desse achamento prodigioso, na doce língua que tentamos aprender. Vossa Senhoria concorda?

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