segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Senhores Singulares -( O romance da revelação do Brasil)- 14 - por Sílvio Castro

(Continuação)

Tainá IV


Vossa Senhoria de certo já entendeu como Tainá é importante para o meu encontro com essa vida que o fado quis me dar. Eu e ela desde aquele primeiro dia de encontro nas águas quase mornas do fim de tarde no rio não mais nos afastamos um do outro. Com ela aprendi quase tudo, certamente aqueles outros conhecimentos que não recolhi da sabedoria de Coaracy. Posso dizer que Tainá deu realidade às lições de seu pai. Principalmente depois que deixei a cabana que dividia com José Pacheco e João Osório e com ajudas de toda a aldeia construi uma nova cabana, a nossa, aonde fomos morar juntos com a aprovação de Coaracy. Tudo foi muito simples: Coaracy me disse esta é Tainá, minha filha menor cuide bem dela e da cabana de vocês. Tainá deixou a cabana grande do pai e caminhou junto comigo para a nossa nova morada, enquanto a gente da aldeia nos rodeava com cantos e bailes. Foi muito bela aquela primeira noite na cabana. No dia seguinte, ao aparecer do sol, estávamos de pé. Eu estava para sair com os outros homens para a caça e a pesca; Tainá começou a preparar a casa, recolheu frutas, preparou um suco muito doce e confortante de uma fruta daqui que eu gosto muito, maracuja, e de tudo me serviu cantando uma canção que eu não conhecia. Tainá me servia e cantava a sua canção. Eu saia e logo Tainá se preparava para receber as suas muitas amigas que já apareciam na soleira da cabana.

Devo dizer a Vossa Senhoria que para mim foi muita novidade aquele primeiro dia. Eu nunca tivera uma casa junto com uma mulher; entretanto posso vos dizer que não senti qualquer embaraço, era como se assim tivesse vivido sempre. A presença de Tainá era para mim um sentir mais profundo do estar na casa. Por isso vos dizia que ela muito me ensinou, pois foi a partir daquele dia que muitas coisas da minha nova existência entraram definitivamente na minha consciência: o comer o beber o preparar-me para sair o preparar as coisas em casa o encontrar ali os lugares convenientes para as coisas o admirar a aldeia da soleira de minha cabana o encontrar os outros e com eles começar o dia.

A partir de então intensa foi a minha vida com Tainá. Tamanhamente, que estou pensando de contar a Vossa Senhoria uma coisa que em verdade não contei nem a mim mesmo. Não sei se ouso, mas depois que Vossa Senhoria, escutando-me como me tem escutado, me permitiu que eu tomasse consciência das muitas minhas coisas pensadas e vividas, acredito que será bom que o conte.

É sobre Tainá e mim. Mais precisamente é sobre os meus mais profundos sentimentos quanto a Tainá. Vossa Senhoria dirá que já vos contei tudo. Não, não vos contei tudo. Agora tomo definitiva coragem e revelo o meu grande segredo.

Sempre maior, com o passar dos dias, foi se fazendo o meu sentimento por Tainá. Aquele inicial interesse pela sua beleza aumentou sempre. Depois que a conheci nos mais recônditos segredos, passei a sentir que mais ainda desejava conhecê-la. Para isso eu sabia que todos os meus sentidos deviam unir-se no ver Tainá. Na serenidade de nossa satisfação vivida - Tainá não se escondia em nada - eu sentia o desejo constante de vê-la toda e sempre. Tainá sorria bonita e mais bela quando isso eu lhe dizia. Eu a olhava toda e sempre. E ela gostava de meu olhar prescrutador. Assim a vi continuadamente: seus gestos movimentos sua maneira de olhar de olhar-me de sorrir rir de brincar de ficar séria de ficar zangada. E vi o seu corpo, a maneira como cuidava dele, como penteava os longos cabelos que lhe desciam pelas costas com um pente que era uma planta pequena redonda cheia de espinhos ou como massagiava a pele deleitosa com a bucha, um vegetal ou planta seca, como feita de grossos fios entrelaçados e da forma da espiga de milho. Conheci o seu odor, o seu perfume, perfumes. O suor de Tainá é doce, agro-doce. A saliva de Tainá é doce, agro-doce. Quando eu lambia a sua pele delicada, via os caminhos mais recônditos de Tainá. Muitas horas passei olhando as linhas e curvas das costas de Tainá. Os seus cabelos muito compridos, sedosos e pretos, eu os vi um por um, desde as raízes até as pontas que se alinham com as curvas do corpo. A boca, eu a olhei sempre, de longe e de perto, quase confundindo com o olhar mais profundo os meandros dos lábios de repente aparecidos como desconhecidas paisagens vermelhas e molhadas. Para minha vista, mistérios são os seios de Tainá: são altos, pequenos e redondos como a lua-cheia e são imensos, devoradores, e deles desço para contemplar a barriga lisa lisinha longa, uma terra que avança sempre até o umbigo fundo que a faz parar.

Vejo, olho sempre as belezas de Tainá e lhe peço para alungar as belas pernas roliças, movimentar os dedos pequeninos dos pés e deixar que os meus olhos descerrem as coxas de maravilhas e se aprofundem nos cabelos banhados de sua vergonha, a qual olho, entreabrindo-a docemente.


O fim de Antônio Fragoso



Depois de tanto contar, já agora entendo que Vossa Senhoria deseja saber tudo o que aconteceu nesses anos entre nós e a gente daqui. Compreendo a vossa missão de saber, por isso passo a contar aqueles fatos mais difíceis da nossa experiência, difíceis principalmente para mim. Não desejo esconder nada, pois ainda que o quisesse fazer, não o poderia, que tudo o acontecido se tornou história de todos, nossas, de Pacheco, Osório e minha e de Coaracy, Tainá e toda a sua gente.

Os fatos que agora começo a vos contar são acontecimentos que se unem com os muitos outros já do conhecimento de Vossa Senhoria, mas que se mostrarão com uma cara dolorosa. Ao ponto de me parecer impossíveis.

Tudo aconteceu num só dia, não como uma fatalidade, mas como consequência de muitos outros eventos. Por isso, hoje podemos ver os fatos daquele dia maldito como um grande mistério em que ódio amor violência solidariedade convivem não mais como opostos, mas como diversas manifestações de vida vivida. Viver será esse desassossego?

Tudo se desencadeou da alma ruím de Antônio Fragoso e com ele tudo acabou.

Como Vossa Senhoria desde há muito sabe, ele vivia como um danado. Desde quando se afastou da aldeia para isolar-se na sua cabana escondida, fugindo da nossa convivência, ele se fez mais do que era antes violento em todos os seus gestos. Como não era admitido desde sempre nas caçadas coletivas da aldeia, ele se atirou a uma caça louca. A partir de então se fazia ver com um grande punhal que sempre escondera. Antônio Fragoso agora o tinha à mão, isto mesmo quando aparentava tranquilidade no seu refugio rústico. Com a arma ele caminhava pela floresta decepando mesmo sem precisão plantas ramos folhas flores frutas. E passou a caçar com ódio, não mais só para comer, mas para deixar um sanguinolento rastro de animais massacrados e abandonados nas trilhas dos caçadores da aldeia.

Antônio Fragoso se mostrava a cada dia mais endemoniado. Não deixava as raparigas em paz, perseguindo-as por todas as partes, nos bosques, nas margens dos rios, na praia diante do mar aberto e rumoroso. Era tamanha a sua obsessão de posse e violência que passava horas e horas a procurar uma planta conhecida pela capacidade de manter indefinidamente uma ereção. Ele a esfregava de contínuo e se escutavam gritos pavorosos que vinham da floresta: era Antônio Fragoso que se consumia em dores.

As mulheres da aldeia passaram a evitar o caminho da cabana de Antônio Fragoso e se por acaso o viam que as espiava enquanto tomavam banho no rio ou no mar, logo nadavam para longe. Antônio Fragoso não sabia nadar.

Foi quando aconteceu o episódio com a bela Ara, que Vossa Senhoria já conhece.

Assim foi indo Antônio Fragoso na loucura de suas violências, sem respeitar nem as mulheres casadas daqueles homens que por tanto tempo persistiram em acolhê-lo. A partir de um certo momento esses homens passaram a ver em Antônio Fragoso um inimigo que até então ignoravam que existisse.

Um dia eu saira de manhã cedo, deixando como sempre Tainá nas suas coisas de todas as manhãs. Ao contrário de como acontecia quase sempre, não esperei por José Osório e João Pacheco, mas fui sozinho em procura de alguma coisa na floresta ou no rio. Eu mesmo não sabia o que procurava naquela manhã, se frutas plantas manioca verduras, ou se em verdade me propunha a pescar no meu pedaço predileto do rio. Não sabia. Não sabia se talvez desejasse somente pegar uma canoa dentre as muitas ancoradas nas margens e remar rio acima, sem parar. Era uma estranha manhã aquela.

Já algumas horas tinham passado, o sol esquentara e a floresta se mostrava em todas as suas infinitas manifestações quando, como que de repente, tomei consciência do absurdo daquela manhã. Acometido pelo sobressalto da descoberta corri na direção da aldeia.

Ah! Vossa Senhoria não pode saber como eu corria!

Foi quando, finalmente fora da floresta, entrei no caminho que dava direto para as cabanas da aldeia. De longe vi um grande movimento de gente que corria para todos os lados. Corri também eu para a minha cabana e via que para ali corria tanta gente.

Corri; e lá chegando já ouvia os gritos que vinham de dentro da minha casa. Entrei e vi Tainá caida de uma parte e que chorava sem parar, enquanto da outra parte Antônio Fragoso ameaçava Osório e Pacheco com o punhal.

Entrei correndo na direção de Antônio Fragoso. Logo caímos agarrados pelo chão, ele querendo apunhalar-me, eu lutando para dominar sua mão direita que apertava o punhal. Lutamos como onças, como tigres, e cada vez que o punhal de Antônio Fragoso feria a minha carne, eu escutava mais fortes os gritos de Tainá. Lutamos. Lutamos sempre, e quanto mais eu procurava bloquear e desarmar a ferocidade de Antônio Fragoso, mais ele me feria e mais eu me sentia perdido. Desesperado, num desconhecido gesto de força nascido do medo, virei o braço direito de Antônio Fragoso que golpeando-me sem cessar como que teve um átimo de hesitação e então virei aquela mão com o punhal contro o seu peito e o abracei sem parar, mais e mais estreitamente, até que parou de mover-se.

(Continua)

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