quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Ser escritor

Raúl Iturra

Parece-me que as pessoas pensam que ser escritor é a alegria da vida. Sentar-se numa cadeira ora com caneta e papel, ora com máquina de escrever ou, ainda, com um computador. Pode ser escritor quem viva da sua obra literária, ou escrevedor, quem escreve mal, verbo que roubo ao meu amigo e colega da Universidade de Cambridge, Jorge ou Mario Vargas Llosa.

Era bom que fosse assim tão simples! As palavras não aparecem do imaginário do autor de uma obra literária ou científica. Nem das sua ideias, ou representações que se formam no espírito.

Para começar, quem se dedica a essa arte, deve ter disciplina. A primeira disciplina, é a gramática, que organiza a ordem das palavras e distingue tipos de palavras: substantivo, adjectivo, verbo, conjunção. A seguir as regras da sintaxe ou essa definição da ordem das palavras: primeiro um adjectivo antes de um verbo, uma conjunção ou palavra invariável que serve para ligar proposições ou expressões da mesma espécie. E mais, mas não tenho espaço nem tempo para definir todas as actividades que um ser humano que se dedica à literatura, deve respeitar. Apenas uma ironia: saber se as palavras se escrevem com b ou v, em que sítio colocar a vírgula, e em que momento parar frases cumpridas. Estas são as mínimas regras para ser escritor.

A arte de saber essa gramática, que varia conforme a língua em que escreve: os latinos com muitos adjectivos e exuberância e imaginário, os saxónicos, frases curtas, directo ao ponto, sintéticas as frases que só na escrita são capazes de definir ou narrar um sentimento, como a minha compatriota Isabel Allende, ou escrever sem muitas comas ou conjunções, esticando as ideias com símbolos literários que mantêm o leitor na perpétua ansiedade de apressar a leitura porque essa ordem das palavras, o atrai, se quem coloca preto no branco, sabe como funciona.

Mas, isso não é tudo: fabricar uma obra literária corresponde a uma ideia que se tem nas lembranças, ou na memória ou, ainda nos sentimentos. Os sentimentos devem ser domesticados pela gramática, para não atrapalhar nem o escritor nem o leitor. No meu ver, há quem se agarre às regras, ou cria uma própria, usando muitos verbos para representar no ideário do leitor, as actividades que narra. Como faz Gabriel García Márquez, ou Marguerite Yourcenar. Cito estes dois, dentro de uma plêiade de autores, porque não permitem ao imaginário fazer brincadeiras, como Agatha Christie, excelente literata, que mantém a alma em fio enquanto não se atinge o final do livro. Pelo que, sou capaz de dizer que há vários tipos de escritores: os que pesquisam antes de escrever sobre uma temática, os que ocultam sentimentos na obra, como Marcel Proust, Edward Foster. Ou os portugueses, especialmente Aquilino Ribeiro que converte para o leitor a realidade rural numa fantasia de amor, ou Camilo Castelo Branco, que faz de uma paixão um texto que nos atrai até ao fim, por se tratar de amores da nossa terra. Ou Fernando Pessoa, que cativa a nossa atenção ao converter, como Kafka, a realidade em ficção.

O espaço é estreito. Há tanta coisa para dizer. Como isso de que um escritor precisa de ler muito para entender a realidade social, a interacção, as leis de um Estado, línguas latinas para traduzir, os usos e costume sociais.

Mas, não apenas. Disciplina, muita disciplina. Ser escritor é um trabalho como outro. Há horas para descansar, horas para escrever, hipótese para provar. Varia conforme o escritor. O meu amigo Gabo (García Márquez) não consegue escrever se não tem os pés dentro de um alguidar com água. Ou, como me confidenciou Isabel Alende, que tem mais de trinta sucessos em romances e será o nosso próximo Nobel do Chile em Literatura, sempre começa a 20 de Janeiro a escrita de um novo texto e deve ser acabado em Novembro do mesmo ano porque, diz, não acredita em deus, mas é supersticiosa. Tem horas para escrever e horas para passear pelo quarteirão, sem festas nem jantares, apenas tempo dedicado a investigar em arquivos, como é o caso do seu livro Inés del Alma Mia, 2006, Arreté, Barcelona.

Falta dizer que a escrita é uma disciplina que nos afasta das pessoas, é um vício do qual é impossível desviar-nos. A mente do escritor está sempre no livro que escreve. Como acontece comigo: começo às 7 da manhã, descanso uma hora no meio do dia, e paro às 19, quando não há luz natural. A seguir, janto, normalmente introduzo um filme em DVD, que vejo cinco minutos, porque adormeço de imediato.

É a disciplina do corpo e da alma, o que faz de um ser humano com imaginário e investigação, um escritor.

Para acabar, porque por pura desgraça da minha vida, hoje dormi demais o descanso do meio-dia, faltei as minha próprias regras e atrasei a minha escrita. Escrita que pode ser também baseada em experiências históricas vividas e sentidas, como o livro de Carlos Loures, Talvez um Grito baseado nas suas experiências de preso político (Edições Salamandra, Lisboa, 1985).

Ser escritor é uma prisão dura e cheia de solidão, onde o telefone deve ser fechado, não responder à campainha da porta, não ser interrompido por conversas anódinas, e ter sempre, ao pé de nós, um pequeno livro em branco, onde se vão apontado as ideias que pensámos antes, mas pela disciplina na que deve estar submerso o livro, devem ir depois. O livro tem uma lógica, a do escritor e a disciplina do livro, que manda que esses factos devem ir depois.

Escritor, a aventura mais solitária do mundo, profissão que não nos diz se está frio ou calor, se já comemos ou não. Enquanto o texto está nas mãos do escritor, o escritor mora dentro dessas ideias. Como acontece comigo e outros que conheço, que mal estamos doentes, entramos a pé nu no livro que tínhamos escrito e até a gripe cura…Estamos fora da realidade, que estamos a converter em narrativa para nós desabafarmos e o leitor se entreter, como esse monumento de livros do Gabo, de 1974, editora Bruguera, Barcelona: Los funerales de la Mamá Grande, páginas 133 à 157.

Isso é ser escritor: de uma pequena obra, nasce uma obra gigante…especialmente se estamos acompanhados pela pessoa que amamos e nos apoia. Nunca conheci um escritor solitário em absoluto: sempre tem alguém que o ame e tome conta dele, como o marido de Isabel Allende, que sabe bem a que horas lhe deve dar um café, um pastel, ou... E eu, a Maria da Graça, que corrige todos os meus erros gramaticais e dá-me informação sobre a vida política e familiar… e me ensina a escrita à portuguesa…

1 comentário:

  1. Muito bem,Professor. Mas, com esse horário tão apertado, não acredito que cá chegue música nenhuma :)

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