terça-feira, 23 de novembro de 2010

1984. E as mulheres? - 2

(Continuação)

Augusta Clara de Matos

(Ilustração de Adão Cruz)


Q e A - Gostava de colocar aqui, em simultâneo, o problema do aborto porque aquilo que se verifica, e sobre isso gostaria que vocês se pronunciassem. é que há sempre uma enorme hipocrisia à volta deste tema. Quando é aceite a despenalização do aborto ou se concede algum aligeiramento em relação a esta questão, e isso tem-se verificado ao longo dos tempos, e normalmente por imperativo das relações de produção e sociais do momento. Esta despenalização do aborto em Portugal. creio que estamos todas de acordo quanto a isso, não veio favorecer quase nada as mulheres. É uma mascarada que esconde o problema fundamental, isto é. para além do planeamento familiar que não se faz como deve ser, não tem em conta o direito da mulher a ser dona do seu próprio corpo.

F. - Bom, vamos lá a ver. Revolução sexual eu acho que não houve embora me pareça que, na realidade, nestes últimos tempos, começou a haver uma maior informação sexual. Essa informação começou a ser mais divulgada, portanto as pessoas passaram a ter acesso a dados que não tinham antes e que poderão utilizar como entenderem. Quanto à questão do homem não me parece que isso tenha vindo alterar muito a situação porque, no fundo, nesta sociedade, ela já era um privilégio seu.

J. - Mas achas que isso deu maior libertação à mulher?

F. - Não, eu penso que não deu maior liberdade. Deu-lhe possibilidades de ela mais facilmente poder ir para a cama com A ou com B sem ter tanto receio de engravidar. Na realidade, muitas mulheres de fora do nosso círculo (porque nós não somos representantes da maioria), com uma vida mais tradicional, passaram a poder dar-se ao luxo daquilo a que vulgarmente se chama uma aventura, mas em termos de libertação estão perfeitamente na mesma situação em que estavam há uns anos atrás: continuam a viver muito em função do prazer masculino. A sua libertação sexual é, assim, só aparente. Não assumiram que são diferentes e. na maioria dos casos, apenas passaram a fazer aquilo que os homens faziam o que é, na minha perspectiva, negativo.

J. -E qual é a garantia que tu me dás de que essas mulheres tradicionais não gostam mais de ser assim como são?

F. - Isso é considerar-nos a nós diferentes das outras!

Q e A- E tu ouves e lês depoimentos e sabes que não é assim. Júlia! Porque muitas mulheres tradicionais, se assim podem ser chamadas, se manifestam descontentes em relação a uma vida sexual rotineira e sem expressâo na sua vida afectiva. Estou-me a lembrar do número elevadissimo de mulheres que respondeu anonimamente ao relatório elaborado por Shere Hite e onde, dadas as condições de anonimato, se pronunciaram sem preconceitos sobre pormenores muito íntimos, coisas de que as pessoas não falam abertamente e onde ficou bem clara uma grande consonância de insatisfações e desejos. As necessidades de alteração, neste campo, não parecem assim tão diferentes...


J. - Então por que não mudam de comportamento?

F. - Porque há outros valores em jogo e, penso eu, muitas delas ainda não foram capazes de criticá-los!

I. - Penso que o peso da educação aí conta muito!

F. - Por outro lado, todas nós devemos ter tido uma educação tradicional e, apesar disso, conseguimos avançar. Pergunto porque acontecerá isto com umas mulheres e não com outras. Como é que algumas parecem nem sequer, ainda, se terem apercebido da sua situação de inferioridade?

J. - Eu não aceitei determinados padrões e sofro as consequências dessas atitudes sentindo-me, por vezes, perfeitamente sozinha. Mas luto por isso! A maioria das pessoas da minha geração, a geração dos trinta e às vezes outras mais novas, acomodaram-se. São, em muitos casos, gente de esquerda e com certas responsabilidades mas, no fundo, os seus padrões de vida são perfeitamente convencionais. Porque não querem estar sozinhas nem perder determinadas regalias. Para muitas mulheres da minha idade se calhar, é, muito mais cómodo manterem aquela vida, e arranjarem um amante em vez de lutarem por modificá-la. Não têm força para mudar a vida!

F. - Mas muitas sentem-se tão mal que me ponho a pensar se será apenas porque não querem ou porque algo lhes falta que as ajude a dar o salto. Porque é que não têm força?

J. - Pode ser porque nunca foram motivadas mas, também, diga-se em abono da verdade, provavelmente nem criaram essa motivação. Eu, ainda muito nova, disse não a um casamento em que tudo me era favorável porque não queria ter filhos naquela altura e fui contra tudo porque entendi que devia actuar de acordo com a minha maneira de pensar. Tem que se opor uma certa barreira e eu penso que a maior parte das mulheres não quer fazer isso. Agora era capaz de ser mãe de 5 ou 6 filhos e viver de uma maneira terrível, ou de já estar separada! E claro que é mais fácil cumprir os papéis que a sociedade distribui!

Por mim, sempre senti, desde o liceu à escola de arquitectura que a mulher tinha que ter tanta importância como o homem e sempre lutei por isso através daquilo que lia, do que via, das lutas dos estudantes, mesmo sem estar ligada a nenhum partido.



A MULHER E (N)OS PARTIDOS POLÍTICOS


Q e A - Essa tua última frase suscitou-me aqui, agora, a maneira como todos os partidos, mesmo
os intitulados revolucionários, contribuíram bastante para levar as mulheres a pensar que o seu estatuto social só se alteraria depois de ter havido uma profunda transformação económica. Não sei se estão de acordo.

Parece-me, contudo, que se esboça cada vez mais a convicção de que todas estas mudanças se terão que dar com uma certa simultaneidade e que o papel das mulheres ou seja do realce de certos valores femininos será muito importante.

J. - Já agora que falaste em partidos gostava de dizer que uma das coisas que me chocou quando estive ligada a um partido, e chocou-me profundamente porque eu vinha já com estas ideias de muito antes do 25 de Abril, foi verificar que grande parte dos homens, com obrigação de terem uma mentalidade diferente, tinha atitudes perfeitamente machistas. E volto a afirmar: isso chocou-me tanto mais quanto entendo que as pessoas que têm responsabilidades políticas devem ter uma certa coerência, e ali não tinham. Isso também em relação às mulheres que aceitaram o seu papel secundário. Mas as que mais me preocupam são as que não tiveram acesso à cultura e que pensam da mesma maneira que eu, dizendo as coisas por outras palavras. A essas ainda é muito mais difícil libertarem-se. Agora às mulheres tradicionais dentro da nossa geração e do nosso nível intelectual, deve dar-se-lhes, sim senhor, toda a informação possível mas elas até se recusam a ler! Por essas eu já quase não tenho consideração.

(Continua)

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