quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Carta aberta aos líderes parlamentares do nosso país, a propósito de um menino pobre que eu fui

Júlio Marques Mota *

Coimbra, Outubro de 2010 

Exumo Senhor Deputado


O menino pobre que eu fui nasceu algures numa aldeia do interior beirão, no início dos anos quarenta, num país rural fechado sobre si mesmo e sob um regime de ditadura. Com pais pobres, deles histórias lidas não ouvia e contadas também não. As que ouvia, eram ouvidas e sentidas nas homilias, ao domingo. Mais tarde, aprendeu a ler, e depois a ler histórias, graças a uma senhora desde há muito desaparecida, que mão amiga, que lhe emprestava em formato de quase livro folhetins do jornal O Século. Foi assim num tempo de pobres que tomou o primeiro contacto com a leitura de histórias, com a “literatura”.

Esse menino pobre que eu fui cresceu e quis ir estudar para o liceu da época e da sua região. Na altura, era preciso fazer o exame de admissão ao liceu, mas … foi impedido por um detalhe impensável: como para isso teria que ser proposto pela sua professora primária, esta por iniciativa pessoal exigia 1.500$00 quando um camponês ganhava 18$00 por dia e era quando tinha trabalho. Era então preciso dinheiro e este não havia. Dinheiro não o tinha, o exame de admissão, esse, não o podia pois fazer.

O menino pobre que eu fui fez o protesto possível do seu tempo, protesto quase impossível no mundo opressivo do fascismo a um qualquer adulto, protesto tornado viável apenas porque era criança: escreveu ao ministro da Educação de então e curiosamente a carta ter-lhe-á mesmo chegado às mãos. Um processo foi instaurado à professora! Era ilegal o que fazia, não podia levar dinheiro a alunos seus. O inquérito foi feito na sede do concelho, onde a autoridade local, o regedor, o levou e trouxe de regresso. Tinha 10 anos. Quando esse menino pobre que eu fui regressou à aldeia acompanhado da autoridade foi recebido quase que em festa, com uma recepção dos pais dos meninos pobres de então. “Ganhámos!”, era a expressão que se ouviu.

Nesse ano, todos os pais dos meninos que fizeram o exame de admissão e que ainda não tinham pago parte ou todo o dinheiro até esse dia recusaram-se então a pagar, excepto esse menino pobre que eu fui, porque não tendo feito o exame, nenhum pagamento tinha que recusar, porque nada havia a pagar. “Ganhámos!”, era a expressão que se ouviu, mas a vitória foi de curta duração. A professora passou a contornar a lei. A partir daí, só levava à admissão os alunos um ano depois de terem feito a quarta classe, quando já não eram seus alunos. Levar dinheiro, extorquir dinheiro, passou assim a ser legal. O menino pobre que eu fui aprendeu a sua primeira lição em política. Escreve ao ministro porque nessa idade acreditava no sistema, acreditava que o que estava errado era a posição da professora e não o sistema político, que era a árvore que estava estragada e não a floresta. Democracia era termo que nem sequer conhecia, nunca tinha ouvido falar. Termo proibido, como muitos outros, soube depois. Mas afinal descobriu que o problema estava também no regime fascista, pela sua própria natureza, descobriu que neste os pobres nunca poderiam ganhar.

O menino pobre que eu fui revoltado quis ir para a grande cidade, carregado com um saco de sonhos, talvez, e uns bolsos vazios de tudo, certamente. Aí cresceu como marçano, cansado na vida a subir e a descer escadas de caracol, as escadas de serviço dos prédios onde ia, a carregar com as encomendas que os clientes pediam. Mas aí também encontrou a literatura e muito mais. Clientes seus ofereciam-lhe livros, não lhos emprestavam, clientes seus convidavam-no a ler e, mais, a discutir depois os livros oferecidos e lidos, nas suas casas.

Estava-se no final dos anos cinquenta, início dos anos sessenta, na rua e na praceta Afonso Lopes Vieira, em Lisboa, perto da Avenida do Brasil. Assim, dessa maneira, aprendeu o sentido da fraternidade que o livro permitia, aprendeu aí a ter o gosto de ter livros. Desse tempo, ainda se lembra dos primeiros livros de francês usados no Charles Lepierre e possivelmente na Alliance Française, de capa azul, que um neto de um Lucena pintor, carinhosamente lhe ofereceu, não lhos emprestou.

Esse menino pobre que eu fui continuou a crescer e continuou a ler. Depois, tornou-se operário fabril. Trabalhava de dia, estudava de noite algumas horas e dava gratuitamente explicações noutras a colegas seus, trabalhadores como ele, na cave do café Nova Iorque, ao fundo da Avenida dos Estados Unidos da América. O tempo não dava para tudo e adoeceu. Mais tarde, doente, na sua aldeia do interior da Beira preparou-se para os exames do sétimo ano de liceu. Uma dificuldade, duas dificuldades, na Matemática e o menino pobre que eu fui escreveu ao Palma Fernandes expondo a sua solução dos problemas que não batiam certo com a resposta, ou do livro de texto, a Álgebra Racional, ou do seu próprio caderno de exercícios, com que gerações sucessivas aprenderam a treinar-se na Matemática. Recebeu a resposta e o exercício do livro de Álgebra Racional, de um ponto de exame nacional dos anos quarenta pensa, não tinha solução (!) e quanto ao outro, ao do seu caderno, vinha uma carta a explicá-lo e a explicar onde estava o erro da sua solução. Mas vinha algo mais: vinha um pacote com livros oferecidos, não emprestados.

O menino pobre que eu fui, esse, habituou-se a ler para além dos manuais. Foi, como voluntário, fazer exame de Filosofia ao Liceu Pedro Nunes e foi à oral. Do que se lembra é de ter olhado para a prova de exame que estava cheia de sublinhados a vermelho. Lembra-se que nessa oral se falou de várias coisas que estavam na prova escrita entre as quais, talvez, de Jean Bernard e do Homem como totalidade, o que a esse nível de estudos seria uma novidade. Aí estava a marca de estudantes de Medicina, entre outros, estudantes da JUC, um ou outro preocupado com o tratado do Henri Ey, ou estudantes de linhas políticas mais à esquerda, como por exemplo Eurico de Figueiredo, mais tarde líder do movimento associativo da Universidade de Lisboa. Todos estes com forte componente humanista, como os seus trajectos pessoais o mostraram depois, todos eles com quem de vez em quando convivia no mesmo café em que à noite estudava. Do que se lembra ainda foi de que a oral correu bem, muito bem mesmo, e que no fim um membro do júri uma pergunta levantou talvez um pouco espantado: “Profissionalmente, o que faz”.

A resposta foi talvez, para eles, inesperada: “agora nada, sou operário fabril, estou com tuberculose a tratar-me em casa, na minha aldeia”. Os membros do júri levantaram-se e cada um deu-lhe uma lembrança do que tinham à mão, uma caneta, um livro, uma revista. Saiu e já fora da sala as pessoas que assistiram à oral felicitaram-no com um aperto de mão, uma ou outra com um abraço, um abraço dado a quem não conheciam, a quem tinha acabado de afirmar que estava com tuberculose e esta doença era a SIDA de então. Das ofertas dos professores às felicitações, era tudo já uma questão de livros, de memórias, de saberes adquiridos, de espaços roubados à ignorância, em suma, de humanidade, de alguma cultura, talvez. E havia livros oferecidos, não emprestados, ou com muita dificuldade comprados.

Desse tempo recorda ainda encontros havidos, encontros tidos, encontros por outros sabidos com os olhos vigilantes nas noites escuras de Lisboa porque vigilantes do sistema, na casa de um casal que muito amava este país e a sua juventude, Augusto Costa Dias e a mulher Luísa Costa Dias, algures na Avenida de Roma. Eram escritores e ele dirigia a Editora Portugália, creio. De novo com livros oferecidos, livros lidos, livros discutidos. Aí aprendeu o gosto das tertúlias entre jovens que, com o carinho e a dedicação desse casal, animavam o Suplemento República Juvenil e, mais tarde, o Diário de Lisboa Juvenil, ligações entre jovens que o afastamento por doença fez perder. Aí ganhou uma outra noção: a da dádiva cultural, dada por todos aqueles actores em presença.

E agora, que estou velho, esse menino pobre que eu fui e já não sou lembra-me que concretizou a insubmissão possível e num regime em que esta era praticamente impossível. E agora? Porquê esta submissão quase total aos mercados financeiros? Pergunta-me ele. Também aqui, responda-lhe quem souber. Mas é uma questão importante, tanto mais quanto hoje é a lógica destes mercados que é predominante. Viu-se e vê-se agora com as políticas de austeridade, em que os mercados financeiros ditam as leis, as normas, os regulamentos, as políticas orçamentais nacionais, que Bruxelas depois aproveita para tornar a impor e para reforçar os mecanismos de controlo. Rapidamente, os grandes operadores financeiros criaram um clima de instabilidade e de submissão dos Estados nacionais aos seus ditames, muito mais que antes da crise, clima a partir do qual estão a recuperar financeiramente do desastre que eles próprios criaram e nos impuseram, com a complacência de Bruxelas e dos governos nacionais. Fazem descarrilar as taxas de refinanciamento dos Estados nacionais, fazem descarrilar os encargos da dívida pública, fazem descarrilar os orçamentos nacionais, anulam ou condicionam os projectos de futuro de cada nação aos imperativos do presente que estes mercados impõem. Por detrás dessa imposição, desse pretendido controlo, está uma estranha certeza, uma estranha teoria, a de que os mercados são sempre eficientes e traduzem sempre o melhor, mesmo que este “melhor” possa ser o que temos estado a assistir. Estranha noção de eficiência em que se quer fazer assentar a democracia nos países da zona euro. Se dúvidas houvesse veja-se que o próprio Fundo Europeu de Estabilização Financeira precisou ele próprio do rating das agências privadas.

E, agora, que estou velho, esse menino pobre que eu fui e já não sou lembra-me também da primeira lição que em política duramente aprendeu. Fechado o meu círculo de vida activa, deixa-me sozinho com uma outra pergunta: será que os pobres continuam hoje ainda a não poder ganhar? Também aqui, responda, quem souber. Hoje? E amanhã? Para onde é que parece que nos estão a empurrar? Veja-se quais são as perspectivas do FMI, por exemplo, quanto à evolução de numerosos países, entre os quais o nosso, apresentadas por esta Instituição (Outubro de 2010):

— Para restaurar a viabilidade das suas finanças públicas, numerosos países devem reduzir os seus défices orçamentais.

— O reequilíbrio orçamental faz geralmente descer o crescimento a curto prazo. Graças a um novo conjunto de dados, concluímos que dois anos depois, uma redução do défice de um ponto percentual do PIB tende a fazer baixar a produção em cerca de 1/2% e a aumentar a taxa de desemprego em cerca de 1/3% do ponto percentual.

— A longo prazo, o desendividamento pode fazer crescer a produção fazendo baixar as taxas de juro reais e permitindo reduzir os impostos.


De acordo com o FMI, a grave situação que atravessamos ainda se vai degradar mais e mais. Mas a última afirmação é elucidativa. O problema residirá no facto de que as taxas de juro reais hoje existentes são muito altas. É preciso pois uma cura forte de austeridade. Assim, de acordo com esta linha de raciocínio, acredita-se que a melhoria das contas públicas supostamente conseguida, por todo o lado na Europa, levará à redução da dívida pública por unidade de rendimento, que proporcionará a diminuição das taxas de juro, e logo em termos relativos o serviço da dívida, que permitirá o crescimento económico e que tudo em conjunto fará baixar as taxas de juro reais. Sendo este assim um efeito positivo esperado, apenas no longo prazo que não se sabe quando é, então é porque se julga que um grave problema de agora são os níveis elevados das taxas de juro reais e que as políticas orçamentais nacionais altamente restritivas são necessárias para as reduzir.

Mas o que falha aqui neste raciocínio é não se querer entender o porquê de estarem altas. Não podemos ignorar que são os grandes fundos de investimentos, grandes fundos de pensões, os grandes bancos de investimento, os grandes investidores e especuladores que as impõem e exigem quando cada Estado nacional precisa de se refinanciar. Esse é o verdadeiro problema a enfrentar e deve sê-lo hoje e não amanhã, num tempo indeterminado.

À procura do longo prazo, com estas políticas orçamentais corre-se o risco de se destruírem os próprios Estados democráticos. Dê-se um exemplo: a Irlanda tem estado com taxas de crescimento negativas e na ordem dos 2,6%. Financiada a sua dívida pública a taxas de 6%, só a manutenção dos valores da dívida pública por unidade de rendimento em 78% exige aproximadamente um excedente público primário na ordem dos 7%, numa situação de crise! No caso de Portugal, para uma taxa de financiamento de 6,5%, um crescimento esperado de 1,6% e uma dívida pública por unidade de rendimento de 76,8%, seria necessário um excedente público primário de cerca de 4% (com a excepção da taxas de refinanciamento que são as mais recentes, os restantes dados foram retirados do Country Handbook da Moodys de Junho de 2010). Repito a pergunta que me foi feita atrás: será que os pobres continuam hoje ainda a não poder ganhar? Como se perspectiva, continuarão, assim, a não ganhar...

Retomando o FMI, o raciocínio subjacente ao texto anterior conduz-nos assim a pensar que se abdica do controlo dos mercados de capitais, diremos mesmo que se continua a abdicar de uma regulação eficiente e que, em vez disso, se segue uma via dolorosa para contornar e só a longo prazo a verdadeira violência que estes mercados actualmente estão a impor. Porquê esta submissão quase total aos mercados financeiros? Perguntou o menino pobre que eu fui. Questão pertinente quanto o que se deve exigir antes, e exigir é o termo, é que estes mercados e estes agentes, independentemente de se estar em tempo de crise ou não, estejam fortemente regulados e que muitos dos seus mecanismos e instrumentos utilizados na especulação sejam rigorosamente proibidos. Na Alemanha começou-se a dar sinais nesse sentido, quando o regulador deste país, BaFin, proibiu, mas lamentavelmente só agora, quer as vendas a descoberto sobre as obrigações dos governos europeus e sobre as acções dos maiores bancos e seguradoras nacionais quer também os contratos de CDS a descoberto sobre as obrigações de Estado; proibiu as armas de destruição maciça a que se referiu Warren Buffett. Curiosamente, esta atitude alemã foi acompanhada por um profundo silêncio das Instituições Europeias.

A situação de desregulação nos mercados de capitais é tal e o poder destes é tal que levam a situações que me parecem paradoxais: há Estados nacionais que se refinanciam a valores superiores a 6% ou até a cerca de 12% como a Grécia enquanto a Microsoft se pôde financiar ainda agora em 4,75 mil milhões de dólares a 0,875%, há bancos que obtêm liquidez do BCE a 1% para a “cederem” aos Estados nacionais que estão sob a égide deste Banco a 6,5%. Dá tudo isto muito que pensar…

A União Europeia ao impor na prática o que os mercados financeiros querem em vez de construir os mecanismos e instituições que sejam garantes do projecto que esteve na base da sua construção, a Europa do progresso social e das solidariedades, não estará ela a fazer com que esse menino pobre que eu fui e já não sou passe afinal a ter a ideia de se estar a caminhar para a situação económica de onde partiu? É certo que quando criança viveu num sistema político de ditadura, caracterizada por um aparelho feroz, enquanto agora estamos numa democracia mas numa situação em que se quer que o caminho que se está a impor tenha o consentimento de toda a gente, porque é uma exigência dos mercados. Caminho provavelmente de retrocesso ao nível económico e de bem-estar, que nos pode aproximar dos tempos do menino pobre que eu fui. Caminhos a fazer lembrar George Orwell, entre outros autores, e os seus livros Na Penúria, Guerra de Espanha e 1984, talvez.

Exageros nesta análise? Disso, bem gostaria de estar certo, mas do que apenas estou certo é de que se não mudarmos de direcção é para onde poderemos ir parar. Porém, o que parece agora inegável é que a submissão aos mercados continua a imperar, enquanto os pobres continuam a não ganhar, mas querem continuar a ser respeitados, considerados, o que nos outros tempos, já longe, era impossível. E isso continua a ser ainda possível. É afinal neste quadro que se deve inserir a dimensão das questões levantadas a propósito do empréstimo dos manuais escolares e que estimularam todo este texto. Responder a estas exige pois que se responda primeiro à crise global e nacional e, para isso, é necessário que as grandes Instituições internacionais reassumam as funções para que foram inicialmente criadas e que as Instituições regionais como as da União Europeia, em conjunto com os Estados-membros, sejam uma garantia colectiva da existência de uma verdadeira soberania dos Estados face aos múltiplos mercados globais e nacionais.

Certo da vossa atenção, as minhas cordiais saudações académicas.

*- Prof. Auxiliar Convidado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

Sem comentários:

Enviar um comentário