sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A Democracia em que vivemos - um novo fascismo? (I)

Carlos Loures


Reli recentemente uma nova edição portuguesa de O Contrato Social (Du contrat social ou essai sur la forme de la République), a obra de Jean-Jacques Rousseau, agora com uma interessante introdução de João Lopes Alves. Esta edição não se refere à versão definitiva do texto, publicada em Amesterdão, em 1762, mas sim a uma primeira abordagem do tema, que não é a que melhor conhecemos, por ser a mais divulgada. .Aliás, a edição de Amesterdão tinha um subtítulo diferente – Du contrat social, ou Principes du droit politique. A leitura desta edição conduziu-me à releitura da de Amesterdão que, por sua vez, me levou a uma reflexão sobre a natureza da nossa democracia. O que ressalta da minha leitura de Rousseau são as reservas que ele tinha para com um regime que iria, sobretudo a partir de 1789, nos dois séculos seguintes constituir a principal esperança dos oprimidos.
Talvez pareça um exagero comparar a democracia que temos ao fascismo que tivemos. De certo modo, é-o. É, sobretudo, uma maneira provocatória de exprimir o sentimento de revolta que me assalta ao ver que este sistema democrático, teoricamente emanado da vontade popular, expresso no voto livre dos cidadãos, nos proporciona uma sociedade tão tacanha e uma classe política tão ou mais corrupta do que a do antigo regime salazarista. É um exagero assumido, com o qual procuro chamar a atenção para aquilo que na prática se manteve inalterável – a injustiça social, as grandes assimetrias culturais (embora a iliteracia – quase um eufemismo para analfabetismo - seja agora protegida por diplomas). O poder, o verdadeiro poder, está nas mãos dos grandes grupos económicos, tal como durante o período da ditadura. Mas agora esta situação é sancionada pelo voto livre dos cidadãos ao elegerem os seus representantes no Parlamento e o chefe de Estado. Quanto a mim, é uma diferença pouco mais do que formal.

Há liberdade uma total de expressão, mas a televisão e o marketing político das grandes máquinas partidárias do chamado «bloco central» se encarregam, através de insidiosos opinion makers, de unificar o pensamento. E sem o aparato repressivo dos Goebbels e dos António Ferro, com a disseminação do «politicamente correcto» aí temos o pensamento único, um instrumento fundamental do neo-liberalismo. Porque o pensamento único , apresentado como pedra angular do sistema, impõe como verdade absoluta e indiscutível o primado do económico sobre o sociopolítico. Já vi jovens economistas rindo-se de argumentos de natureza moral e política. O politicamente correcto, que abriu caminho ao pensamento único, impõe uma total independência da economia. A economia tem de ser apolítica, dizem com o ar de quem diz o que é óbvio. Outros pilares do sistema – o realismo (as coisas são como são) e o pragmatismo (para se solucionar um problema de natureza económica, a ideologia política tem de ser erradicada).

Os princípios da nossa democracia, mercê do realismo, do pragmatismo e da perspectiva do pensamento único, obedece já não a princípios – obedece às lei e aos interesses do mercado. A verdade é que esta tese do carácter apolítico que as medidas económicas devem ter é aceite por muita gente que se considera de esquerda. «Porque» (já ouvi este argumento) «se a minha vida depende do êxito de uma cirurgia, interessa-me a perícia do cirurgião, não o seu credo político». Naturalmente que esta apoliticidade das medidas económicas são expressão de um credo político – o neoliberalismo.

.Nós, os cidadãos eleitores, aceitamos princípios inaceitáveis e aceitamos anormalidades como coisas normais – as liberdades impedindo a Liberdade de florescer. Pode dizer-se tudo, fazer-se tudo. Um exemplo recente pedófilos, em seguida ao julgamento em que foram considerados culpados e condenados, vieram às televisões dar uma conferência de imprensa. Dirão – é a Liberdade. Pois é – uma liberdade que põe em pé de igualdade criminosos e cidadãos eméritos. O sistema dá liberdade ao povo de escolher porque tem mecanismos que controlam o eleitorado, que induzem o voto. Como alguém que deixa à solta um cão potencialmente perigoso, mas amestrado e, portanto, inofensivo.

Então a democracia foi aviltada, pervertida?

Poderá dizer-se que a democracia começou mal, que já no seu berço da Antiga Grécia continha os estigmas que iria transportar ao longo de dois milénios e meio e que iriam chegar quase intactos até aos nossos dias. Com efeito, a democracia ateniense não abrangia nem os escravos nem as mulheres, não impondo também uma divisão equitativa da riqueza entre os cidadãos. No rescaldo da grande fogueira de 1789, a escravatura foi sendo abolida na maioria dos países europeus, embora quase nunca em obediência a um límpido sentimento de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

As mulheres, ainda que, sobretudo nas últimas décadas, tenham avançado muito na sua luta de libertação, continuam, mesmo quando a letra da lei lhes confere todas os direitos e garantias outorgados aos cidadãos em geral, a ser consideradas cidadãs de segunda. Sobre a divisão da riqueza no ocidental paraíso das democracias parlamentares, é melhor nem falarmos. Democracia – autoridade do povo; de que povo? Nunca, em parte alguma, a não ser no território imaginário das utopias, se ouviu falar de democracia integral – sempre os governos supostamente democráticos se deixaram manchar por desigualdades sociais ou de género, por segregações étnicas, por marginalizações inomináveis. Quando mesmo, não serviram de capa ou ornamento a terríveis tiranias. Será que a verdadeira democracia é inatingível?

Voltemos a Jean-Jacques Rousseau. Será que ele tinha razão quando disse: «Se formos a considerar o termo na acepção mais rigorosa, nunca houve verdadeira democracia, nem nunca existirá.» (…) «Seria inconcebível estar o povo a reunir constantemente para tratar da coisa pública». (…) «Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Um governo tão aperfeiçoado não convém aos humanos».

Um povo de deuses? A democracia só poderá ser atingida por um povo de deuses?



(Continua)

9 comentários:

  1. É tudo verdade, mas é a melhor de todas.Há que aperfeiçoar. Aqui à porta temos muito melhor. No nosso país isto atingiu as raias da indecência.

    ResponderEliminar
  2. Leiam este texto do Carlos, não deixem de ler. A mim faz-me um bem bestial. Raios partam esta democracia. Eu também quero mandar no nosso destino.

    ResponderEliminar
  3. Que belo texto, Carlos, com o qual concordo plenamente. Eu, que sempre lutei pela democracia, sinto-me defraudado e absolutamente descrente com a prática real deste nojo de democracia. Não era isto que eu esperava e não é com isto que se vai a algum lado. Contradizendo o Luis, há alternativas, difíceis de atingir, mas há. Acabar com o neoliberalismo e o capitalismo, e destronar o poder económico do seu estatuto de deus e rei de tudo e de todos, acima da lei e da nação. Este, sim, é o cancro da humanidade, e como cancro pode matar, se já não matou a nossa vida no planeta. A verdadeira vida da humanidade não é esta, a verdadeira vida social está muito para além daquilo que nos traz de pé.

    ResponderEliminar
  4. Qual melhor, Luís? Isto está podre de alto a baixo. Chame-se democracia ou outra coisa qualquer, é preciso mudar radicalmente. Estou farta até à ponta dos cabelos dos discursos resignados.

    ResponderEliminar
  5. Não, fora da democracia não há solução. Não! A democracia e o estado de Direito, sem isso nada vale a pena.Mas é preciso, tal como diz o carlos e o Adão, que a dignidade esteja acima da ganância,o social acima do individualismo. mas só em democracia.Tudo o resto é bem pior.

    ResponderEliminar
  6. Como é que tens a certeza disso, Luís? A democracia antes de ser inventada também não existia (estas evidências nem sempre são ridículas). Porque diabo a nossa cabeça de humanos, que tantos mistérios tem desvendado,não há-de ser capaz de inventar outro sistema político para além dos que já existiram? É o mesmo que dizer que não há vida noutras galáxias.

    ResponderEliminar
  7. Fora da democracia parlamentar e do estado de Direito não há solução, é preciso, antes de tudo, acreditar nesta evidência.Olha em volta, Augusta! Tudo bem pior.É preciso lutar, melhorar,envolvermo-nos nos problemas, mas em democracia.

    ResponderEliminar
  8. Posso concordar que a Democracia é o sistema político mais aceitável que os seres humanos conheceram desde que há registo histórico. A nossa identidade de pontos de vista acaba aqui, Luís. O Adão e a Augusta, por, à partida, terem ideologias mais próximas do que defendo, captaram o que quero dizer neste primeiro texto de uma pequena série - este sistema em que a Europa vive nada tem a ver com a Democracia, Luís; isto, foi a maneira que os poderosos encontraram de continuar a dominar - fazendo-o em nome daquilo que combatem. Os políticos e os economistas, os empresários, essa gente envolvida na fraude do BPN, são democratas? É a maior burla ocorrida em Portugal e parece haver conivências diversas e situadas ao mais alto nível da hierarquia política. No regime fascista a impunidade não teria sido tão total. Tenho saudades do fascismo - nem pensar! Saudades de um futuro que já não verei, isso sim. Asco por um presente em que, em nome da Democracia por que tantos lutaram e alguns deram a vida, os crápulas se movimentam com uma liberdade que nem o fascismo lhes concedeu. Bem sei que não é só em Portugal que isto se passa; mas é daqui que eu sou.

    ResponderEliminar
  9. Claro, os crápulas fazem o que fazem mas a culpa é toda deles não é da democracia. Voltamos ao homem novo, solidário, a culpa é do egoísmo. mas alguém considera estes senhores democratas? Por isso mesmo é que eu digo que só com mais e autêntica democracia Uma democracia plena colocava estes tipos na prisão, é por não ser uma democracia que isto anda como anda. Mas não podemos ter saudades do fascimo, do nazismo, do comunismo, dos estados muçulmanos onde se matam mulheres à pedrada,onde há familias bem piores que estas que nos sugam até ao tutano, dos estados corruptos de África, dos US onde não se tratam os doentes por não terem dinheiro.Tudo isso.A UE com todos os seus problemas é um farol de tolerância...se calhar é demais.

    ResponderEliminar