quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Deus como problema (1)



Adão Cruz

Ao ler, há já uns tempos, na revista Visão, um artigo de José Saramago, “Deus como problema”, fui repescar um texto meu, escrito há alguns anos, baseado na resposta que dei à carta de um amigo e cujo tema era o problema de Deus. Com algumas considerações desse meu amigo e com o texto de Saramago tentarei uma reflexão que possa constituir uma espécie de calibração para todos aqueles a quem a lastimável situação do mundo em que vivemos não é de todo indiferente.


A genuína pureza da poesia vive e anda por aí em tudo o que é vida, mas não é fácil captar a sua complexa simplicidade. Como não é fácil, ou não se quer, entender a complexa simplicidade da evidência que também anda por aí, em quase tudo. O medo da evidência apavora as mentes que, de uma forma ou de outra, perderam a liberdade ou rejeitam a liberdade, sobretudo a liberdade de pensar. Interiorizam mecanismos fortemente redutores que são aceites acriticamente, porque não existe ou foi tacticamente anulada a capacidade crítica, ou são impostos por uma espécie de fé ou crença consuetudinária, impiedosamente dogmática, que cristaliza toda a forma de pensar, mesmo de pessoas habituadas e traquejadas numa moderna cultura científica da evidência.

Estas as pessoas, ainda assim, de boa fé. Porque as há, e não são poucas, que fazem da má fé o antídoto da evidência que não conseguem negar. Por isso o texto de José Saramago me impressionou, ao mostrar que o mundo é muito claro, pelo menos até onde nos permite que o seja.

Deus continua a ser um grande problema, ou melhor, o homem continua a ser incapaz de resolver o problema de Deus, a equação cujo resultado estabeleceu como certo sem conhecer os dados que a compõem.

Há muito tempo que deixei de discutir fé e religião com gente crente. Dogmas e argumentos condicionados não são permeáveis à razão, e as conclusões são sempre frustrantes. Sou ateu, rigorosamente ateu, mas já fui crente. Esta parte negativa da minha vida teve um lado positivo. Permite-me, hoje, a comparação entre a falsa liberdade da aleatória felicidade de um certo obscurantismo e a aliciante liberdade da possível felicidade de uma razão não mais miscível com qualquer grande ou pequena crendice.

A paz nascida da libertação de todas as angústias metafísicas, em favor do valor da vida e da força projectora da curiosidade humana, a paz e a serenidade de uma total descrença mística constituem a grande oferta que a vida me fez.

Como aconteceu a Saramago, também a mim me acusarão de impiedade, sacrilégio, blasfémia, profanação, desacato. De tudo isto é capaz quem não tem o mínimo pejo em aceitar e colaborar nos tais espectáculos estilo cecil b. de mille, como foi o revoltante show do funeral daquele que deveria ser o representante da humildade e da pobreza, sobretudo quando comparado com o funeral do rei da Arábia Saudita, um dos homens mais ricos do mundo, esse sim, um deus terreno cuja riqueza mundana e fraqueza humana lhe permitiriam, sem escândalo, um sepulcro de ouro em vez da campa rasa.

(Continua).

(ilustração de Javier de Juan-Creix)

2 comentários:

  1. Muito bom. Espero pelo resto. Mas essa imagem pregou-me um susto que até ia dando um salto para trás :)

    ResponderEliminar
  2. Adão, os teus textos têm-me ajudado muito, eu já tinha chegado ,sozinho, à conclusão que ninguem se podia arrogar representante de deus na terra, mas tu deste o empurrão necessário. E, claro, quando hoje sabemos que a hierarquia católica é o que é, também ajuda.Mas a verdade é que eu tenho muito boas resordações da Igreja lá de Castelo Branco, hoje entro nas igrejas para "ouvir " o silêncio da cidade. Cá fico à espera como a Augusta...

    ResponderEliminar