segunda-feira, 22 de novembro de 2010

1984. E as mulheres? 1

Augusta Clara de Matos



                                                           (Ilustração de Adão Cruz)
 Em Junho de 1984 fiz, para a revista Questões e Alternativas, uma entrevista sobre a situação da mulher em Portugal. Viviam-se no país tempos conturbados semelhantes aos tempos difíceis que hoje vivemos. Passaram-se, entretanto, 26 anos. É, por isso, curioso relembrar aqui essa entrevista para que cada um possa fazer um exercício mental de comparação entre uma e outra época no que a este tema diz respeito. Terá mudado assim tanto o panorama? É um jogo curioso. Entrem nele e vão encontrar, para além das questões sérias, momentos divertidos.



A nossa revista tentou avaliar o estado do equilíbrio entre a energia posta na sua luta e as forças obscuras que, dentro dos estreitos limites de visão do mundo real, jamais conseguirão aceitar a igualdade na diferença. As entrevistadas foram três mulheres inteligentes "na casa dos 30", ou seja, eu e elas, éramos todas balzaquianas - Fernanda, programadora de informática; Isabel, funcionária pública; e Júlia, arquitecta - sobre esta problemática e registámos as suas opiniões.
 «Mas tu não ousas. Nem só os meninos choram à noite presos no medo dos olhos do avô... Grandes gigantes têm por vezes grandes medos nos corpos de aço. Grandes gigantes temem por vezes os pequenos gestos que nascem na ponta dos dedos...».
Maria Lisete, íntimo Limite

INFLUÊNCIA DA SITUAÇÃO ECONÓMICA


Q e A - Como todas sabemos, a crise profunda que se está a viver actualmente em Portugal tem implicações não só nas suas estruturas económicas e políticas mas, também, e com grande acuidade nas próprias relações interpessoais. No vosso entender, estará a situação da mulher a evoluir num sentido directamente proporcional aos outros sintomas da crise ou, por razões específicas inerentes a essa própria situação e à abertura ocorrida com o 25 de Abril de 1974, ela se processa dum modo particular, diferente?

Júlia - Bem, eu acho que a mulher, como membro da sociedade, está a sofrer as consequências da crise como toda a gente sofre. Quero dizer, portanto, que as próprias relações com os outros são influenciadas pelo seu estado económico. Por exemplo, o facto de não se poder reunir muita gente em casa ao mesmo tempo sem se ter que fazer contas primeiro torna-se limitativo da convivência e faz por vezes, desmembrar os pequenos grupos.

No entanto, gostava de assinalar dois pontos distintos. Por um lado há a evolução no seu próprio emprego, quando o tem, que não tem nada a ver com a crise porque se ela se consegue impor, se consegue demonstrar que é capaz em determinados ramos, capaz de resolver problemas sem estar dependente do homem - e eu falo concretamente em relação à minha profissão - essa evolução é efectiva. Eu penso que mesmo num trabalho banal, através do seu próprio esforço, uma pessoa se pode valorizar e sentir bem. Por outro lado é preciso deixar bem claro que a diminuição das distinções que se têm vindo a fazer entre o homem e a mulher no trabalho tem sido por mérito das próprias mulheres.

Fernanda - Tenho a sensação que aquelas pessoas que já tinham atingido um determinado nível de despertar estão a aproveitar esta fase de crise para uma certa interiorização, uma certa análise que é, neste momento, uma forma de nos situarmos. O que me parece, também, é que depois dum período em que tudo foi posto em causa se está a entrar numa fase de retrocesso, de reabsorção duma série de valores tradicionais, uma fase, portanto, de involução. Daí que eu pense que, para as mulheres que nessa altura não conseguiram romper com os padrões estabelecidos, esta crise está a ter aspectos profundamente negativos.

OS FACTORES CULTURAIS

Isabel - Tu tocas aí a chamada crise de valores e era por ai que eu ia começar. Mais do que a crise económica, neste momento, seja a nível mundial, seja ao nosso nível local, acho que o problema principal é mesmo o dos valores estarem postos em causa. Esta crise já vinha desde antes do 25 de Abril. Então, claro, explodiu tudo. Havia uma série de coisas em que as pessoas deixaram de acreditar, porque lhes foi provado por a mais b que realmente não era bem assim, mas, entretanto, não foram criados valores novos. Acho que, mais do que numa involução, as pessoas se sentem completamente perdidas.

Q e A - Pois, senão, como é que se compreende que mulheres que pensam como nós se desinteressem dum tipo de discussão destas?

J. - Aí a crise económica continua a ter muito que se lhe diga porque mesmo essas mulheres, não tendo condições financeiras para pagar a quem as auxilie nas tarefas domésticas, têm que se desdobrar entre a casa e o emprego.

I. - Isso é verdade mas, neste momento, já há muitas mulheres que conseguem dividir essas tarefas com o marido o que, com uma certa coordenação, permite deixar tempo livre para outras coisas. O pior é quando se tem que levar o mês inteiro a pensar como conseguir esticar o dinheiro. isso ocupa muito tempo e tira a disponibilidade para pensar no que quer que seja para além dessa preocupação.

Q e A - Mas serão só os problemas económicos que condicionam ou, também, uma certa acomodação que sofremos, mesmo sem darmos por isso? Muitas vezes ao nível daquelas coisas de que se diz «não vale a pena», aquelas coisas com que nós condescendemos, não é? Não será que a mulher abdica com frequência, perante o homem, de se informar, de se assumir como um ser com iguais potencialidades, mesmo quando em igualdade de circunstâncias com ele?

F. - Claro que o aspecto económico é importante mas o factor de desmotivação pesa muito porque se poderiam aproveitar sessões de cinema e até concertos gratuitos...

J. - Mas aí tens que incluir, também, o homem!

I. - Teremos que considerar essa condescendên¬cia, essa dependência em relação ao homem como um factor adquirido quase geneticamente? Há não sei quantos séculos que se vem incutindo essa ideia na cabeça de todas as mulheres. Será que já herdá¬mos essa predisposição? Eu recuso-me a aceitar que isto seja verdade. Acredito fortemente que é um de¬feito de educação contra o qual é preciso lutar com garra.

J. - Estou-me a lembrar do espanto dum arqui¬tecto holandês, uma vez em que fui à Holanda inte¬grada numa comissão constituída por duas mulheres e três homens. O próprio facto de aparecerem mulheres numa comissão era para ele tão curioso quanto na Holanda isso raramente acontecia. Num outro encontro a que também fui, nos Estados Uni¬dos, não havia uma única mulher. Isto dá que pen-sar... Portanto não é só o aspecto económico que interessa para uma certa libertação de ideias e da autoconfiança da mulher.

Q e A - Dá que pensar efectivamente. E dá que pensar sobretudo em relação a certas mulheres que perante a palavra feminismo têm uma atitude de rejeição na maior parte dos casos sem que fique muito claro a que corresponde essa atitude. Não se chega bem a compreender se não será uma desculpa para não levarem à prática o que tanto defendem em teoria. O que é que vocês pensam disso?

J. - O problema do feminismo está muito liga¬do a manifestações que, na minha opinião, acho um bocado estúpidas como, por exemplo, as manifestações contra o uso de soutien e outras em que se defende que é a mulher que deve passar a mandar, etc. Eu acho que deve haver igualdade em equilíbrio porque o homem e a mulher têm características genéticas completamente diferentes. Há coisas que eu vejo pelo meu filho que é rapaz e a quem eu, no entanto, não dou nenhuma educação discriminatória

Q e A - E estás convencida que isso é genético ou que há influências que as crianças sofrem logo no berço no sentido duma educação para serem mulheres ou homens?

J. - Ah, sim! A escola, por exemplo. Os pais não conseguem lutar contra a educação da escola!

I. - Não consegues, sequer, lutar contra a educação dos meios de comunicação como a televisão que lhes provoca um verdadeiro fascínio.

J. - Mas aí ainda podes estar perto e explicar-lhes. Agora na escola, há certas idiotices que não se conseguem evitar.

Q e A - E mesmo antes da escola...

I.- Dão carrinhos aos meninos e bonecas às meninas...

INATO OU ADQUIRIDO?


F. - Em relação a isso tem-se-me posto, ultimamente, uma dúvida: até que ponto não estamos a rejeitar que haja outras diferenças entre o homem e a mulher, para além das sexuais e físicas, que se transmitem geneticamente, quando creio que hoje se começa a provar que uma determinada característica acaba por ser assimilada ao longo das gerações? O facto de, logo desde a Pré-História, se terem distribuído as tarefas entre os sexos de forma distinta não terá levado. a própria espécie a assimilar essa diferença de papéis e a transmiti-la hoje geneticamente?

Q e A - Foi assimilada culturalmente e como tal tem sido transmitida. Geneticamente sabe-se que esses comportamentos não se assimilam. Assimilam-se culturalmente e são transmitidos pela sociedade, não é? E é evidente que a partir do momento em que são transmitidos pela sociedade todo o ser humano vai educar a sua descendência nessa linha.

F. - Eu penso que o problema é cultural mas admito que haja mais qualquer coisa para além disso. Basta comparar-me com os meus irmãos para verificar como somos diferentes apesar de termos sofrido as influências do mesmo meio.

Q e A - Mas tu tiveste a tua aventura de vida com interacções necessariamente diferente das deles. Neste momento, e apesar dos grandes avanços da Genética, só se podem dar como provadas as interacções em que se verifica que um só gene está ligado a uma só característica orgânica e isso não é o que acontece na maioria dos casos. As restantes interacções envolvem mecanismos tão complexos - como, por exemplo, um só gene determinar vários caracteres, um carácter ser determinado por vários genes, e outras -, que nada se pode afirmar, a este nível, com certezas inabaláveis. E isto no que diz respeito a manifestações bem concretas no organismo, manifestações físicas e fisiológicas. Quanto a uma entidade com componentes tão subjectivas como o comportamento humano nada está mesmo provado.

Actualmente são as correntes da nova direita que se têm servido destes conceitos sem fundamento científico para manterem discriminações várias entre as quais o racismo e a própria marginalização da mulher.


QUE EVOLUÇÃO SEXUAL?


Q e A - Nas últimas décadas tem-se falado muito em revolução sexual. Porém, começa a pôr-se a questão de ler ela libertado realmente a sexualidade feminina ou de a ter desenvolvido sobre o modelo da sexualidade masculina, do prazer do homem.

I. - Não acho que tenha havido revolução sexual.

F. - Exacto! O que é isso de revolução sexual?

J. - Eu, por acaso, acho que o homem pode ter beneficiado mais, mas a mulher também benefi-ciou. Eu falo pela minha própria experiência que quando tinha 18 anos arriscava ficar grávida porque a pílula era uma coisa em que nem sequer se falava. Os contraceptivos deram uma certa libertação sexual à mulher. Claro que o homem, por tabela, também tem vantagens.

(Continua)

10 comentários:

  1. Isto não está bem: o título não é assim e falta-lhe uma introdução actual que eu fiz. Agradeço que corrijam.

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  2. Relativamente às relações genótipo (o conjunto dos genes)-fenótipo (as características físicas visíveis, o corpo)gostava de acrescentar uma afirmação do Prof. Sobrinho Simões em entrevista publicada no JL desta semana:"Estou convencido que as doenças são mais fruto da influência ambiental do que da predisposição genética, se exceptuarmos aquelas que têm um gene único causador,mas essas não passam de um por cento".E isto só se refere às doenças, quanto mais aos comportamnetos.

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  3. Augusta,um excelente texto, esclarecedor, que eu não comento, em razão de alguma incapacidade perante a sua complexidade e múltiplos pontos de vista possíveis. Apenas no final,e ao contrário do que diz o Prof. Sobrinho Simões, eu penso que as doenças têm um fortíssimo componente genético a par de uma poderosa força epigenética. O mesmo se passa em relação aos comportamentos. Tavez aqui as causas dos fenómenos que levam à epigénese sejam mais marcantes.

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  4. Ele trabalha essencialmente com genes, como ele lá diz. Como tu sabes, nem toda a gente que possui predisposição genética para uma doença a contrai precisamente pela interacção ambiental que não passa só pelo ambiente externo ao organismo, não é? Relativamente aos comportamentos, eu continuo com muitas dúvidas. Uma coisa são as neurociências, outra é o inato versus adquirido.

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  5. A genética é uma área da biologia de que eu gosto muito. Não te esqueças, Adão, que há doenças de origem genética ligadas aos cromossomas somáticos e outras ligadas aos cromossomas sexuais e a maneira como a hereditariedade de umas e outras se processa é um mundo.

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  6. Houve aqui uma grande falha nesta discussão: e as doenças provocadas por vírus, por bactérias e outros microrganismos ou parasitas, que são muitas, têm uma componente genética? Que eu saiba não e, como tal, não se transmitem à descendência a não ser que, em fase activa desse microrganismo, infectem o feto, como é o caso da SIDA. Muito eu gostava de ver o Rui de Oliveira e o Carlos Leça da Veiga participarem nesta discussão.

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  7. Augusta, eu não sou geneticista, embora tenha alguns conhecimentos no que diz respeito à genética em cardiologia. Eu penso que pode haver, além de uma transmissão genética ipsis verbis, uma predisposição genética multifactorial para esta ou aquela patologia, incluindo aqui a resposta às doenças infecciosas. Mas não confundamos doença genética com doença congénita, produzida esta, pela sida, pela talidomida ou outras causas iatrogénicas.

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  8. Adão, eu também não sou especialista em genética, gostava de ser. Sei o que aprendi sobre isso no curso e o que li e aprendi com uma amiga, essa sim catedrática de genética. Além disso a investigação em genética evoluiu muito. Acredito que, na tua área de especialidade, haja essa componente genética. Creio mesmo que isso está provado. Mas noutras doenças não. Eu poderia ter tido 30 filhos que nunca iriam ter polio transmitida por mim. Se me falas em resposta, já estamos a falar doutra coisa. Por isso é que eu acho muito interessante esta discussão entre a área clínica e a componente de investigação.

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