Carlos Loures
O Professor Sílvio Castro, nosso colaborador, autor deste repto, meu querido amigo e grande especialista na LIteratura Brasileira (e na Portuguesa), afirma que o primeiro evento da literatura do seu país é a Carta de Pero Vaz de Caminha para D. Manuel I. Não concordo, mas sinto-me um pouco como quem estivesse junto de Einstein a contestar a sua Teoria da Relatividade. A idade entre as muitas coisas más que acarreta, trouxe consigo este descaramento de poder discutir Medicina com os médicos, Jardinagem com os jardineiros e, como agora acontece, História da Literatura Brasileira com um Professor Catedrático da Universidade de Pádua.
Que Santo António de Lisboa (e de Pádua) nos valha!
Há anos atrás, com os Professores Sílvio Castro e Manuel Simões, fui a Alcobaça tratar de um assunto editorial na Biblioteca do Mosteiro. Projectava-se na casa uma grande História das Literaturas de Língua Portuguesa e aproveitámos o passeio para trocar impressões sobre o ambicioso projecto. Chegámos ao destino e fomos almoçar, pois faltava muito tempo para a hora que combinara no Mosteiro. Tínhamos pelo caminho vindo a debater questões de carácter geral e quando nos sentámos à mesa começámos a falar da Literatura Brasileira. E surgiu esta questão – quando se pode começar a falar de LIteratura Brasileira?, Sílvio Castro apresentou esta tese que expõe no texto – A carta de Pero Vaz de Caminha - eu discordei e Manuel Simões, lembrou que havia diversas teses sobre o assunto. Mas chegou a comida e a questão foi esquecida ou, pelo menos, ultrapassada por um assunto mais importante.
Acrescente-se que Sílvio Castro dirigiu o volume consagrado à História da Literatura Brasileira, organizada de acordo com aquilo que ele pensava e pensa. A minha divergência era pessoal – o Carlos Loures não estava de acordo; o director editorial não se meteu num assunto que só dizia respeito ao responsável pelo volume. Aliás, a tese de Sílvio Castro é a mais aceite, não só no Brasil, como internacionalmente. Por exemplo, a Professora italiana Luciana Stegagno Picchio (1920-2008), grande especialista nas Literaturas de Língua Portuguesa corroborava-a totalmente.
Por que não estou de acordo? Vou dizê-lo sucintamente, guardando pormenores para mais tarde - parece-me que considerar a carta de Pero Vaz de Caminha como primeiro monumento literário brasileiro, constitui uma relação demasiado apegada ao território, à circunstância histórica, já que o objectivo da carta, a que hoje chamaríamos relatório, foi apenas o de informar o monarca das características específicas da terra achada por Pedro Álvares Cabral. Na minha opinião, tudo o que se escreveu no Brasil até à independência do território, pertence ao acervo da Literatura Portuguesa – Não havia brasileiros – ou melhor, os brasileiros genuínos eram os índios a quem os portugueses iam paulatinamente despojando do território, matando, fosse de “morte matada”, fosse pelas epidemias que espalharam, destruindo, exterminando. E foi assim até à independência – que não foi conquistada, mas fruto do oportunismo de cortesãos que durante o tempo em que João VI esteve no Rio, se habituaram a benesses e mordomias que o regresso da Corte a Lisboa lhes ia retirar, reduzindo alguns à sua dimensão anterior à fuga para o Brasil - simples funcionários, cortesãos sem importância, em alguns casos.
Uma história que não me canso de contar – Há anos atrás, num debate realizado no Centro Nacional de Cultura, um interveniente brasileiro defendia a sua tese em termos de nós, brasileiros, oprimidos, vós, portugueses, opressores. Aí pela terceira vez que ele usou esta oratória maniqueísta, o Professor Eduardo Lourenço (que dirigia o colóquio) pediu-lhe amavelmente que declinasse o nome. O que o jovem fez. Tinha um apelido português. Então, sorrindo, Eduardo Lourenço, disse-lhe mais ou menos isto – «os opressores foram os seus antepassados; não os meus que nunca sairam de Portugal. Foram os que colonizaram o Brasil, e não os que cá ficaram, quem matou, oprimiu, aculturou, violou… E esses foram também os primeiros brasileiros.»
Todos sabemos que as pátrias se forjam com mitos. A batalha de São Mamede que 1128 marca para muitos o nascimento de Portugal, não terá passado de um mero torneio ou de uma escaramuça, segundo outros. A Conquista de Lisboa aos Mouros, em que se descrevem actos de heroísmo como o de Martim Moniz, terá sido negociada e nada de heróico terá tido. O Brasil não escapa a esta regra, tanto mais que a independência se verifica em pleno movimento do Romantismo. O Brasil criou os seus mitos, como todas as nações.
Os brasileiros têm todo o direito de, por exemplo, considerar toda a literatura de língua portuguesa ou galego-portuguesa, Afonso X, os trovadores, Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões… todo o património literário do dealbar da lusofonia, como proto-história da sua Literatura nacional. Essa proto-história pode ser invocada pelo Brasil, por Timor-Leste, Angola ou Moçambique. Considerar Literatura Brasileira o que foi produzido antes de o Brasil existir como nação e muito antes de ser um Estado, para mim não faz sentido.
Não faz sentido, nem o Brasil necessita de nacionalizar literaturas estrangeiras. A partir do século XIX criou uma literatura própria. Em 1922, com o grito Modernista, iluminou toda o espaço literário coberto pelo idioma. E chegou hoje a um patamar de excelência. Nisto, o meu caríssimo Sílvio Castro e eu estamos de acordo. A divergência não é quanto ao ponto de chegada, mas sim quanto ao big bang. E, antes que alguém se antecipe, digo já: é um pormenor bizantino, este que levanto – tenha sido em 1500, com Pero Vaz de Caminha e com a sua carta a D. Manuel, ou em 1836, com a Niterói - Revista Brasiliense”, de Gonçalves de Magalhães, a literatura brasileira, é o que é – bela, pujante e única.
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
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Interessante polémica, e inclino-me para o que dizes,não me parece que a Carta de Caminha tenha o que seja de brasileiro a não ser ter sido escrita no território, se calhar nem isso, terá sido escrita num navio que arvorava a bandeira portuguesa.Mas é bem interessante esta troca de argumentos.
ResponderEliminarNão tendo eu a mínima habilitação para entrar nesta discussão, não posso deixar de, mais uma vez, tecer os maiores elogios ao texto do Carlos Loures pela carga cultural e pela competência com que sempre nos apresenta a sua argumentação.
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