sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A Fome


(Cândido Portinari: "Retirantes")


Augusta Clara de Matos


Quando ouço um homem dizer que tem que pedir uns ovos, um pão e poucas outras coisas à família porque a empresa em que trabalha vai fechar e não lhe paga o que lhe deve e que essa é a única refeição que come durante o dia…

Quando ouço outro homem dizer, de cara baixa, que tem a seu cargo o filho e os netos a quem tem que garantir uma merenda para levarem para a escola, quando a voz desse homem se embarga afirmando ser capaz de explicar ao filho que já quase não há dinheiro para nada, mas não conseguir dizer às crianças que vai ter de lhes retirar os poucos mimos que já têm…

E quando ouço ainda um terceiro homem dizer que é viúvo com três filhos e que a renda da casa está por pagar há três meses …

Quando sei que estes três homens e as suas famílias se multiplicam por muitos mais e vão continuar a multiplicar-se por mais ainda…

Recuso-me a entrar em lugares-comuns, mas algum grito tenho que dar. E o que faço a seguir? Deixo de escrever? É que perdi completamente a vontade.

E todos aqueles que afirmam que estas medidas draconianas são necessárias, senão…mas, para estes e muitos outros já não é senão nada. Já lá chegaram. Que mais condicionantes pode haver para quem já não come como gente, já não vive como gente, já não consegue olhar nos olhos da gente que ainda comemos o que precisamos de comer?

E, ainda por cima, têm vergonha de nos olhar nos olhos, como se tivessem cometido algum crime.

Não sei porque é que me veio à cabeça a Natália Correia. Talvez porque só assim, daquela forma histriónica que era a dela, se possa, se deva gritar contra a fome. Que outra maneira há de expressar isto? E o que é isto?

Não me importa a prosa. É olhar para aquela gente e, embora, vendo-os iguais a nós, não os vemos como nós. Eles estão acossados pela vida, foram marcados a ferro quente, tratados como gado, não sabem o que vai ser o futuro, mesmo o mais próximo.

E eu o que faço, que sou da mesma humanidade mas ainda não estou como eles? Ainda posso manter a minha alimentação, a maior parte dos meus hábitos.

Nunca tive fome, nem me faltaram nunca as refeições necessárias. Mas posso imaginar como me sentiria.

Nunca tive filhos, nem me faltou que lhes dar de comer. Mas posso imaginar como seria vê-los com fome.

E, se eu posso imaginar, como será a realidade?

Já não gosto das palavras que se usaram durante décadas. Estão coçadas, gastas. Que outras há que espelhem a minha desolação?

Só o silêncio mas o silêncio agora não chega.

Vou inventar as palavras que não me vêm neste momento. E, só depois, volto a escrever.

13 comentários:

  1. Augusta Clara, parabéns pelo teu texto tão lúcido. A função mais nobre da palavra é a de transmitir emoções. O teu artigo transmite uma emoção - a imensa indignação pela indiferença com que todos acolhemos a injustiça. Os próprios injustiçados são coniventes. Sem esquecer os vorazes crápulas que vivem da exploração, a verdade é que só tomamos verdadeira consciência da injustiça quando ela de alguma maneira nos afecta. E não precisas de inventar palavras - elas já existem. Precisamos é de as transformar em actos,

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  2. Que se poderá dizer, quando o Carlos Loures escreve um texto a clamar que o Consumo mata o amor e, logo a seguir, vens tu dizer que outras pessoas nem sequer consomem o suficiente para poderem viver com dignidade? Não há melhor retrato deste mundo tão injusto.

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  3. Pois não, pois não. Este mundo desorientado, desregulado, desequilibrado que anda à deriva porque uns poucos tomaram conta dos motores para proveito próprio. E nós que nunca mais lhos tiramos das mãos.

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  4. Sinto profundamente a tua emoção e a tua indignação, bem expressas num texto onde não faltam as palavras certas. E a tua indignação catalisa fortemente a minha, ao ponto de admitir o próprio terrorismo como arma dos explorados, dos humilhados e ofendidos. Não um terrorismo que mate inocentes, mas um terrorismo selectivo que fosse eliminando um a um todos os ladrões e todos os crápulas que transformaram o mundo nesta merda.

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  5. Não há palavras novas pois bastam as que temos para transmitir estas dramáticas emoções. Foi o que você fez Augusta Clara e continue com elas dizendo o que sente. Eu sinto uma tristeza imensa que me acompanha porque existe tudo o que escreveu e existem a par uns marmanjos recebendo milhões de euros de dividendos da PT; e o sucateiro do "face oculta" parecendo o pai dos "pobres" destribuindo automóveis e milhões; e o estatuto que está em estudo para o Museu e Parque de Foz Côa propondo uns vencimentos de 17.000 e 12.000 € mais mordomias; e uns figurõesque andam por aí aos 35/40 anos já estão milionários só com as indemnizações que recebem do lugar donde saíram para irem para outro melhor. Não há palavras, Augusta Clara? Há palavras há, eu é que não as ponho aqui. Sabe, já não os oiço. Acabou a pachorra. Estou cansado de andar por cá a ouvir esta canalha.

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  6. Eu sei que não sou compreendido, mas estou como o nosso Sales, não posso mais com esta cáfila de gatunos. Pelo menos haja alternância, enquanto não aquecem os lugares a malandragem arrefece. Não sei quem disse " os pensos e os políticos devem ser substituídos pela mesma razão.Higiene!"

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  7. Augusta, se te faz bem, fazes bem em desabafar; mas os pobres não precisam que se emocionem com a sua condição. Precisam de mudar de condição, precisam do Estado Social e de emprego. E quem está a tirar-lhes esse apoio, e a espalhar que os países não são viáveis sem uma legião de pobres, não é uma minoria de ricos como diz certa demagogia de esquerda, é um rancho de privilegiados da classe média que (coitadinhos) vão sofrer tanto em 2011 que correm o risco de proletarização. E afinal o que vai ocorrer para eles é um acerto semelhante à inflação dos anos 80. O que me indigna (ouvi hoje na TV) é que uma das bandeiras do neo-liberalismo nacional, as "deduções fiscais" que o PSD conquistou, abranja escalões do vencimento dos secretários de Estado. Essa e outras políticas são o que criam pobreza, não são meia dúzia a comer, são milhares que impedem uma satisfatória distribuição da riqueza. Quem se apercebe devia actuar, como diz o Carlos, denunciar. Por aqui temos feito pouco por isso.

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  8. Carlos Mesquita não leste bem. Não percebeste que era raiva? Não tem nada a ver com pena. A pena rebaixa, a emoção não. Claro que é preciso acção, mas não de robots, de pessoas. Não esperes que,sem emnoção, alguém faça aiguma coisa.

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  9. Augusta, bravo! E por favor, não deixes de escrever, escrever, escrever... um beijinho doce!

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  10. Minha querida Andreia, um beijinho para ti.

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  11. Eu sei Augusta, mas não te peço desculpa por aproveitar o teu texto para vender o meu peixe. Vimos ambos duma prática de discussão política que por mais acesa que pareça ou seja, sabemos que não é pessoal.
    Gosto de fazer umas provocações aqui pelo blogue que a maior parte das vezes parece uma casa de chá. Prefiro os saloons, não sei se é de não beber ou por causa das portas; nunca se sabe quando sai um tipo disparado do meio da algazarra. Bjs.

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  12. Ó Carlos Mesquita, o que é bom é que tu sempre me deixas bem disposta...menos ontem. Sabes que, em relação a isto tudo,já nem sei bem o que dizer. Por isso, o pessoal, ao menos, enquanto pode, diverte-se. Casa de chá? Conheces alguma onde se diga asneiras tantas vezes? "Um tipo disparado do meio da algazarra" :)))Podes aproveitar os meus posts à vontade mas, se me bateres, levas de troca

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