Augusta Clara de Matos
Em Ciudad Juárez, no norte do México, perto da fronteira com os EUA, há mulheres que são mortas e vão para o lixo como os cães e os gatos atropelados.
O escritor chileno Roberto Bolaño, no seu monumental “2666”, reservou 300 das páginas do livro só para fazer um relato pormenorizado das mortes e desaparecimentos de muitas dessas mulheres. E descreveu coisas abomináveis.
Mas não é para falar do livro de Bolaño que escrevo. Refiro-o para elogiar um autor que teve a lucidez e a generosidade de abdicar dum tão grande espaço da sua obra para denunciar factos a que o resto do mundo não dá a menor importância.
Actualmente a comunicação social referiu com abundância as mortes resultantes de guerras entre os grupos de narcotraficantes que dominam a sociedade mexicana. Mas onde é que se ouve falar das mulheres de Ciudad Juárez? A identidade de muitas delas nunca foi reconhecida. Era gente de existência nula, na verdade considerada menos que gente, circulando entre os países da região ou regressada clandestinamente dos EUA onde fora em busca de algum sonho. Se calhar, muitas até já nem queriam ser belas, muito felizes ou muito amadas. Queriam, talvez, ter apenas uma vida própria e em paz. Mas, um elevado número não teve outra hipótese do que regressar para se prostituir ou para trabalhar em bares de frequência duvidosa, o que vinha a dar no mesmo.
No México, os narcotraficantes gozam do estatuto de gente importante que, eles próprios, se impõem mas conferido, também, por sectores da sociedade mexicana, por medo ou conivência. Conivência que se estende à troca, entre todos, dessas mulheres que, ao tornarem-se inúteis, vão para o lixo. São menos que zero. Servem, apenas, para satisfação dos “guerreiros” do narcotráfico e de toda a imensa nuvem que os esconde. Animam a luta, dão sangue novo. Depois, são abandonadas como os caçadores abandonam os cães, terminada a época da caça.
Quem se indigna pelo destino dessas pobres mulheres? Quem as considera gente como nós, com as nossas vidas cheias de direitos e de objectivos? Praticamente ninguém. E Bolaño fê-lo. Já gostava da sua obra. Agora não perco um livro. Infelizmente, Bolaño morreu precocemente e, qualquer dia, já não tenho nenhum para ler.
No Darfur as mulheres fogem, despojadas de tudo, apenas carregando os filhos, à frente das milícias que, a soldo do poder ou com a sua falsa cegueira, as violam a elas e às filhas ainda crianças, torturam e matam, à sua frente, os filhos e outros familiares.
Mesmo quando as víamos nas reportagens televisivas que, entretanto, parecem ter cessado, as suas faces eram o silêncio, o silêncio dos grandes dramas e das grandes tragédias a que falta o coro. Mas, para os grupos editoriais da comunicação social, as mulheres do Darfur não dão lucro. O seu sofrimento não dá notícias que alimentem a mediocridade intelectual reinante, como dão as intrigas palacianas que nos martelam a cabeça dia após dia.
No Sudão, o presidente, acusado de genocídio pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), foi reeleito e não se prevê que a protecção de que tem gozado abra brechas não mudando, assim, nada para essas mulheres cuja vida continuará a ser uma fuga permanente não se sabe para onde, até que alguma poderosa organização internacional resolva agir, tarde e mal, e as proteja se, nessa altura, as mulheres do Darfur ainda forem gente ou já só farrapos humanos.
Quereriam, apenas, poder viver nas aldeias, onde habitavam e de onde foram expulsas, com as suas famílias.
E as de várias etnias africanas a que costumes ancestrais, perfeitamente ignorados pelo colonialismo – como não, se já os elementos masculinos das etnias eram cidadãos de segunda ou terceira classes? -, submetem a mutilações sexuais ainda crianças, a fim de que nunca sejam mulheres de corpo inteiro, nunca possam sentir prazer no sexo, reservando-as à exclusiva tarefa da procriação? O que fizemos nós, os civilizados, em prol do desenvolvimento dos povos, tão apregoado como obra nossa, durante os séculos de colonização para que, com a chegada da independência, estas práticas não tenham desaparecido?
Aqui chegados, é oportuno pensar no papel que a religião tem tido na penalização das mulheres.
A Igreja católica iniciou a saga com o convite que Eva fez a Adão para saborearem a maçã que lhes abriria os olhos do conhecimento. A maldição que esse Deus de fúria, por esse gesto, sobre ela lançou perpetuou-se pelos séculos nesta sociedade judaico-cristã que, para sempre, marcou o mundo ocidental. Fomos as bruxas queimadas nas fogueiras, e assim consideradas por motivos vários, escondidos sob a premeditada falsidade dos senhores da igreja, tantos deles tão venais como muitos outros, sempre com o objectivo da manutenção de poderes seculares.
Por todo o mundo e em todos os tempos fomos troféus de guerra. Com a anuência dos seus superiores, as tropas de todos os exércitos, quando vitoriosas, tinham o direito de pilhagem das terras conquistadas e as mulheres sempre fizeram parte desse pacote. Não há muito tempo, no fim do século XX, nem muito longe de nós, na Bósnia Herzegovina, em pleno continente europeu, argumentos político-religiosos deram origem às maiores humilhações da população feminina do país.
Fomos as intelectualmente superiores cuja obra, em séculos anteriores, nunca veio à luz do dia. Poucas figurámos na História oficial mas a maioria nunca lá foi referenciada, tal como os negros de África. Fomos as Camille Claudel de todos os séculos, a quem restaram, após ter destruído, em fúria, grande parte da sua obra, os últimos trinta anos de vida internada num hospício para loucos. Camille de quem alguém disse ter uma obra tão ou mais valiosa do que a de Rodin que ela amou e a quem fez de modelo.
No mundo muçulmano não é melhor a situação das mulheres. E mesmo quando muitas delas aceitam deixar reduzir as suas liberdades fora de casa a pretexto de se sentirem confortáveis e livres dentro das tradições do seu país e da sua religião, eu permito-me discordar. Os seres humanos são todos iguais e obrigar determinada percentagem de um povo, por exemplo, a esconder-se atrás dum véu quando os restantes podem sentir o sol, a brisa, a chuva tocar-lhes a face, o que é senão violar os direitos que a todos assistem de acordo com a Declaração Universal desses mesmos direitos? Para já não falar nessas mulheres do Afeganistão e do Irão, cuja infelicidade atingiu um grau tal que não é possível qualificar. No primeiro caso, não há guerra em prol da civilização que as livre da barbárie da própria família: Bibi Aisha apareceu na capa da “Times Magazine” sem orelhas nem nariz. Uma vingança de honra que a permanência dos exércitos ocidentais naquele país não serviu para eliminar. O que acontece às mulheres é coisa de segunda linha, de somenos importância nas estratégias mundiais.
No Irão, passa-se o mesmo: por pouco Sakineh Mohammadi-Ashtiani não viu o seu rosto desfeito à pedrada, após ter sido chicoteada por adultério. Apenas a pressão internacional a salvou. Mas quantas mais mulheres iranianas salvará? Mais: quem, invocando falsamente estas agressões, imaginará outras em grande escala? E nada disto é político?
Em Portugal – estamos no mundo ocidental, o tal mais desenvolvido do que as outras áreas geográficas -, as mulheres que não existem andam entre nós, na rua, nos transportes, nos locais de trabalho. Ninguém lhes corta o nariz nem as orelhas mas, às muçulmanas ganharam a cínica vantagem de não terem que esperar que qualquer tribunal especial decrete a sua morte. Um homem rejeitado as pode executar a tiro, em qualquer casa, em qualquer rua. Onde lhe aprouver aplicar a sua justiça por um direito que não consegue admitir que não lhe assiste: impedir a liberdade de escolha de quem se quer ou não amar.
Estas diversas mas convergentes realidades do mundo em que hoje vivemos deitam por terra a convicção dos que afirmam não terem nada a ver com a política. Estão enganados. Todos temos.
terça-feira, 2 de novembro de 2010
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