sábado, 27 de novembro de 2010

Noctívagos, insones & afins - A "Operação papagaio"

Carlos Loures

Quando se fala nas acções armadas contra a ditadura, recorda-se a ARA e a sua espectacular ofensiva contra o aeródromo militar de Tancos, destruindo 28 aeronaves, aviões e helicópteros, ou nas acções das Brigadas Revolucionárias contra as instalações da NATO ou ainda a LUAR, de Palma Inácio, com o seu audacioso plano de tomada da cidade da Covilhã. Mas esquecem-se os especialistas neste período da nossa História recente, da «Operação Papagaio». Inconsequente, com o seu quê de anedótica, organizada por civis – ainda por cima, poetas surrealistas. Contudo, se alguém quiser pegar nesta investigação deparará com a falta de fontes. Luiz Pacheco em “Prazo de Validade” (Contraponto, 1998) dedica um capítulo à operação. Com muitas falhas, a começar pela data. Logo no começo do texto, diz que tudo aconteceu quinze anos antes da Revolução de Abril, o que situaria os acontecimentos em 1959. Impossível.



Em 1959, sei que nada se passou, ninguém daquele grupo foi preso nesse ano. Idem nos dois anos seguintes. Inclinar-me-ia para 1962 ou mesmo em 1963. Em Dezembro de 1961 saí de Lisboa e, à cidade onde trabalhava, chegou-me a notícia (salvo erro, através do Adriano de Carvalho) da prisão de alguns amigos escritores do café Gelo na sua maior parte. Em Agosto tive as habituais férias. Passava-as com a família numa casita perto da Caparica. Não tinha carro (nem havia ainda a ponte) e uma manhã em que fora a Lisboa tratar de qualquer assunto, no regresso à Costa encontrei o Virgílio Martinho (1928-1994), o autor de «O Grande Cidadão», que morava em Almada ou nos subúrbios.

Fizemos juntos a travessia no «cacilheiro» onde apanhávamos os respectivos autocarros. Como disse, o Forte e mais uns «manos» tinham estado presos, mas não conhecia os pormenores. Foi ele que pela primeira vez me descreveu no que consistira a «Operação Papagaio», nome de código para uma tentativa de derrube da ditadura, feita por gente do chamado grupo do Gelo e do Royal – o António José Forte (1931-1988), o Renato Ribeiro, o Manuel de Castro (1935-1971) e o Mário Henrique-Leiria (1923-1980), que não pertencia ao grupo, mas era grande amigo de alguns dos seus elementos, como era o caso do Forte. Aliás, o Pacheco esqueceu o Mário-Henrique Leiria que, tanto quanto julgo saber, foi o elemento principal do grupo

O Mário era «entendido em armas; os outros. eram o mais civis que é possível. O Renato percebia alguma coisa do assunto, pois fora durante a 2ª Guerra oficial miliciano nos Açores, chegando ao posto de tenente e servindo na arma de Artilharia: foi degradado em Tribunal Militar, baixando a soldado raso devido a uma história rocambolesca ocorrida em São Miguel, em que teria protegido um soldado da sua bateria envolvido num crime de morte. Contava-se também que, antes de ser castigado, fizera fogo com uma anti-aérea sobre um avião norte-americano. Não foi castigado porque, estando a comandar a bateria, tinha ordem para atirar sobre todos os aviões não-identificados, o que era o caso, embora essa ordem fosse letra morta. Contavam-se muitas histórias do Renato, poeta de «Sombras»), colaborador da Pirâmide. Uma figura mítica, o Renato Ribeiro (o meu filho chama-se Renato em homenagem a ele). Perdi-lhe completamente o rasto, nem sei se ainda é vivo. Oxalá seja. Adiante.

A versão de Pacheco em «Prazo de Validade»(1998), não coincide totalmente com a que o Virgílio me contou. Mas o Pacheco não esteve envolvido na operação. O Virgílio também não, mas estava mais inteirado. Mais coincidente é a que Fernando Correia da Silva conta na sua biografia de Mário-Henrique Leiria (1923-1980), pois talvez a tenha ouvido do próprio Mário que esteve comigo no PRP, mas nunca me falou no assunto, embora divirja num aspecto essencial – O Fernando dá a operação como realizada o que comprovadamente é um equívoco (talvez da sua memória) – a operação abortou – aí o que o Martinho me contou e o que Pacheco diz no seu livro coincide totalmente. Quanto ao Forte, tendo sido seu colega na Fundação Gulbenkian, de onde saí em 1971, demo-nos até à sua morte, em 1988, almoçando juntos em regra uma vez por mês, além de vários passeios de fins-de-semana que demos juntos, eu, ele, a minha mulher e a sua, a artista plástica Aldina. Mas, tal como o Mário, o Forte não gostava de falar neste assunto. Tendo já falecido todos os participantes na operação (o Renato, se ainda vive terá perto de 90 anos), os dados são poucos. Será que nos arquivos da PIDE se encontrarão as respostas que faltam, nomeadamente as que dizem respeito à data.?

Em todo o caso, Pacheco dá-nos uma pista importante – Luiz Filipe Costa terá feito «uma artigalhada», segundo a pachequiana expressão, sobre o tema, publicando-a num semanário, o Extra, de existência efémera e de que não existem exemplares na Hemeroteca. Numa conversa com o Pacheco há muito anos numa esplanada do Parque Eduardo VII (durante uma Feira do Livro) em que nos referimos de passagem a este caso, deu-me a entender que o Luís Filipe Costa estaria por dentro da operação. O que faria sentido, pois era locutor do RCP. Luís Filipe Costa, um homem ligado ao 25 de Abril (foi ele que se encarregou de transmitir as senhas que serviram de arranque às operações). Só ele poderá esclarecer-nos.

Com todas estas limitações e interrogações, vamos lá então tentar uma quarta versão, subsidiária das outras três: a versão do Pacheco, a do Correia da Silva (herdada do Mário-Henrique Leiria e a minha recordação da conversa com o Virgílio no cacilheiro.

Na Primavera de 1962 (inclino-me mais para este ano), já tinha começado no ano anterior a Guerra Colonial, um grupo de escritores, surrealistas na sua maior parte, do qual faziam parte pelo menos aqueles que já citei, gizou um plano simples, mas que parecia eficaz. Com a casa do Mário-Henrique a servir de base de apoio, pois tinha uma moradia no largo principal de Carcavelos, junto da igreja e do Café São Jorge, transportando-se em dois carros (não sei de quem, pois nenhum dos citados tinha automóvel), cerca das dez da noite, atacariam o Rádio Clube Português na Parede. Dispunham de informações dadas do interior estação.

Sabia-se que àquela hora era posta a rodar uma bobina com um extenso programa do Igrejas Caeiro, «Os Companheiros da Alegria», e que até cerca da meia-noite só haveria um contínuo na estação, pois inclusivamente os intervalos para os blocos publicitários estavam gravados nessa bobina. A ideia era entrar, prender e amarrar o homem e pôr a rodar outra bobina que arrancava com o hino nacional e depois com uma voz grave que dizia, mais ou menos: «Interrompemos o nosso programa, para informar que se verificou um levantamento de tropas, havendo neste momento diversas unidades militares a caminho de Lisboa. Pedimos calma à população…, etc, etc. Marchas militares e, passados minutos, novo comunicado. Os comunicados seriam cada vez mais alarmistas, pedindo-se num dos últimos à população para se reunir no Rossio para saudar o advento da democracia, pois Salazar fora apeado e preso, dizia o «locutor».

Claro, que podia acontecer que alertadas as autoridades, a estação fosse ocupada e a bobina revolucionária fosse retirada antes de chegar ao fim. No fundo, o plano baseava-se na mesma ideia que Orson Welles, tivera com «A Guerra dos Mundos», em 1938, provocando o pânico nos ouvintes, que acreditaram que a Terra estava a ser invadida por marcianos. Neste caso, os marcianos eram as tais unidades que do Norte vinham sobre Lisboa, com a adesão maciça e crescente das unidades locais.

Quando à hora marcada os conspiradores chegaram junto dos portões da estação, tiveram uma desagradável surpresa – no ringue estava a disputar-se uma partida de hóquei em patins, com muita gente a assistir e polícia de serviço para manter a ordem. O RCP tinha instalações desportivas onde se disputavam provas nacionais – de hóquei, basquete, andebol, ginástica, etc.

Balbúrdia dentro dos carros, uns queriam avançar mesmo naquelas condições, mas a maioria decidiu sensatamente adiar o ataque para a semana seguinte, quando novamente estivesse a ser emitido o programa do Igrejas Caeiro.

Só que nos cafés onde paravam, nomeadamente o Café Royal do Cais do Sodré, o Gelo do Rossio e a Brasileira do Chiado, a «Operação Papagaio» era, desde há semanas, discutida e comentada de mesa para mesa como coisa trivial. Sobretudo na Brasileira, a dois passos da PIDE, paravam muitos agentes. Resumindo: os guerrilheiros surrealistas foram todos dentro. A polícia achou graça à ideia, nunca tinham por ali passado políticos como aqueles, poetas meio malucos que davam respostas inusitadas e transformavam os sinistros autos de perguntas numa espécie de «cadavre-exquis».

Durante os interrogatórios, aconteceu por diversas vezes os agentes saírem dos «gabinetes de investigação» e virem rir para o corredor. Não houve torturas. Não se formou processo. Umas chapadas, umas ameaças, e ficaram por ali. Tendo apanhado as armas que o Mário com tanto trabalho arranjara, a PIDE foi-os soltando. A «Operação Papagaio» fracassara. Aliás, como a maioria das que antes de 25 de Abril foram tentadas. Generais e figuras políticas da oposição não terão muitas razões para se rirem dos poetas surrealistas.

Cerca de dez anos depois, em Setembro de 1972, as forças armadas brasileiras, nomeadamente os fuzileiros, desencadearam uma grande operação contra os guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil que estavam acoitados numa região a Norte de Goiás. Chamaram-lhe «Operação Papagaio»: Mas, embora com o mesmo nome de código, não teve graça nenhuma esta operação. As forças da ditadura dos coronéis mataram diversos guerrilheiros comunistas e feriram muitos outros durante a investida.

Sem comentários:

Enviar um comentário