terça-feira, 9 de novembro de 2010

Noctívagos, insones & afins - A respeito dos factores de risco - 3

Adão Cruz

Na grande mesa-redonda dos congressos, a mesa de primeira, a mesa central do poder científico, o altar-mor, reza-se a missa solene. Mas para que ninguém se sinta fora do banquete, permite-se e até se paga, paralelamente, a elaboração de miríades de trabalhos de segunda. Se os há com indiscutível interesse clínico, na sua maioria não passam de especulações pseudo-científicas, sem qualquer repercussão na saúde dos pacientes, apenas para fazer currículo, proliferando como coelhos, e que, como os coelhos, pouca riqueza trazem ao país, neste caso à saúde. Como se costuma dizer, nem oito nem oitenta ou tudo o que é de mais é moléstia. Tanta energia profissional desbaratada! Tantas horas em falta numa boa, humana, correcta e dedicada prática clínica! Os doentes já não conseguem gastar tanta ciência! Parafraseando um colega, os congressos são como romarias, onde se fortalece o espírito de grupo e se combina a feira com a missa, o contrato com a festa, a medicina com a liturgia, a palestra com o sermão, o palco com o púlpito.

Os próprios diapositivos modernos, as tábuas sagradas do PowerPoint, mais preocupados com a sugestão, a insinuação e o aliciamento do que com a verdade do conteúdo, tantas vezes pagos, fornecidos e submetidos pelas próprias empresas à censura das Slide Reviews, são como retábulos a ilustrar o evangelho, desde o discreto até ao excesso barroco, tão sobrecarregados de adereços que às vezes é difícil descobrir o motivo.

Se há médicos conscientes e críticos, que não submetem, de ânimo leve, a sua ética a estas práticas e a estas normas, outros há, e não são poucos, que se deixam arrastar pelos campos magnéticos desta indústria, situando-se nas órbitas seguras de todas as suas esferas de influência e acção, dando uma triste imagem, por vezes de submissão indigna.

Ninguém pretende negar o valor da investigação. Pelo contrário, os médicos têm a obrigação de a enaltecer, sobretudo perante a inoperância, a negligência e a incapacidade do Estado, realçando o papel da investigação e do conhecimento nas mais importantes descobertas da actualidade. No entanto, a despeito de se terem encontrado fármacos quase milagrosos, a despeito de se terem desenvolvido métodos eficazes e fiáveis para se obterem estimativas do risco cardiovascular e se criarem normas de boa prática clínica, é muito redutor cingir a prevenção ao uso de fármacos, como insinua a profusa propaganda das revistas médicas, acriticamente consentida, que à semelhança das revistas de quiosque mais parecem propagandear perfumes e detergentes, como se os médicos não passassem de receptivas donas de casa delirando com as milagrosas propriedades do Tide e do Presto. A própria indicação de práticas higieno-dietéticas, de difícil realização numa sociedade carenciada como a nossa, bem como a sensibilização através de campanhas de marca e bem-me-quero – na sempre obcecada imitação da divindade americana - protagonizadas por simpáticas senhoras do atletismo de perna e do atletismo político, pouco ou nada sensibilizam, transformando-se, por vezes, em mero folclore e em mais um processo para aumentar o consumo irracional de exames e de drogas, ao fim e ao cabo, o objectivo de todos os magnânimos patrocinadores.

Tais campanhas deveriam fazer parte, isso sim, de um profundo trabalho de pedagogia política e social desde a instrução primária, com lúcido empenhamento de todos nós e do Estado. Apesar das curvas de declínio na mortalidade cardiovascular, após a utilização e divulgação de todas as descobertas e novas medidas decorrentes da investigação, nem tudo são rosas. Não nos podemos esquecer de uma realidade intencionalmente escondida, as graves consequências iatrogénicas, isto é, as consequências resultantes do mau uso e abuso dos medicamentos e das más práticas médicas, seja a iatrogenia química, a iatrogenia dos inúmeros exames dispensáveis, a iatrogenia invasivo-interventiva, a iatrogenia social ou económica, incidindo muito especialmente na terceira idade, a maior vítima da irracional medicalização e instrumentalização da vida. Uma loucura e uma verdadeira catástrofe, pouco perceptível a uma boa parte dos médicos, incapazes de parar para pensar.

(ilustração de Adão Cruz)

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