quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Para Sempre, Tricinco ALLENDE E EU - autobiografia de Raúl Iturra - (2)

(Continuação)

Comentar os meus textos, não é o objectivo desta Introdução. O objectivo é definir a minha hipótese deste livro que escrevo, estas minhas memórias, para o qual preciso procurar citações minhas para não esquecer o já referido elo central deste o meu texto. Dádiva, racionalidade e reciprocidade, são conceitos queridos por mim, por ter recebido nos factos da minha história, a solidariedade de tantas pessoas para viver e sobreviver, uma lista imensa, quase impossível de reproduzir no meu livro. O mais importante sempre foi esse o meu amigo já desaparecido, Iain Wright . Queridas, também, pela luta que todos empreendemos, desde longe do Chile, para derrubar a Ditadura. Havia uma imensa solidariedade entre todos nós, chilenos tristes e deprimidos, por causa do exílio. Dádivas de ternura para ajudar aos que estavam mais tristes do que outros, reciprocidade entre nós, ao faltar pão ou piorar a economia de um de nós, de qualquer de nós.

Éramos de afiliações políticas diferentes, mas, no exílio, elas desapareciam e foi natural formar um grupo de dança de bailes chilenos, na qual todos participamos, arrecadando colaboração para os prisioneiros injustamente aprisionados no Chile. O meu papel era, após a dança ou a representação, proferir uma conferência sobre Direitos Humanos e proclamar as injustiças da Ditadura que pretendia governar o nosso País. Isto, porque, infelizmente, os chilenos levaram tempo a aprender uma língua que, de palavras latinas, tem muito pouco. O eu ou Iain Wright, falávamos sempre: ele era Escocês, eu tinha aprendido inglês desde pequeno, bem como levava já muitos anos na Grã-bretanha, por ter cursado vários estudos na Escócia e na Inglaterra – nas Universidades de Edimburgo e Cambridge. Aliás, formamos um grupo para vender as manufacturas dos prisioneiros e todos os Sábados, com neve ou com sol e chuva, estávamos na Praça do Mercado de cidade e vendíamos esses produtos. Como Presidente de Chilenos Exilados, era eu quem devia enviar o acumulado a sítio seguro no Chile, normalmente via Amnistia Internacional. Esses Sábados eram com a minha pequena família entra 8 a.m. até as13 p.m. Recebíamos mostras de simpatia, mais uma dívida de dádiva, do povo inglês. As vezes, insultos e explicações pacientes para dizer que não éramos criminosos, apenas solidários com o mal estar do povo chileno. As nossas filhas, pequenas como eram, estavam ai e, em idade tenra, aprenderam essa solidariedade que, hoje, adultas, casadas, profissionais e mães, sabem gerir.

De uma humanidade e humildade, mas com sabedoria imensa, impossível de narrar. Talvez apenas referir que essas nossas duas crianças, hoje sou doutoradas em saberes de como salvar ao mundo da extinção, em Flora e Fauna, a outra, psicanalista de crianças filhas de pais exilados . O exílio, bem levado, ajuda a avançar, a irmos em frente, a termos alternativas, como é o nosso caso e o de muitos outros, ao optarmos por ficar nos países de acolhimento e saber viver como eles, é mais uma dádiva de reciprocidade que, sem saber, o falecido ditador traidor, nos legara!


Mas, o exílio é um passaporte para a solidão, o esquecimento das memórias da infância, dos sítios do nosso nascimento, é um o nascer de novo, esquecer a língua mãe, a obrigatoriedade de aprender línguas estranhas, o sotaque embaraçoso, que faz de nós seres de terceira ou quarta categoria, para os naturais do país de acolhimento e também em frente dos nossos filhos. Poucas são as pessoas delicadas que costumam dizer: “Mas, que bom, fala tão bem a nossa língua! Quem me dera ter essa habilidade de falar várias línguas, como o senhor!”, seja verdade ou não, é a verdade deles que nós aceitamos com prazer. Não consigo esquecer o dia que uma das minhas descendentes troçara de mim, ao dizer que eu não tinha autoridade de mandar sobre ela, porque não me entendia na sua língua inglesa. A minha resposta foi simples: “pelo menos faço o esforço e falo mais línguas do que tu, que só sabes a que falas”. A sua vergonha foi grande e nunca mais fez referência a essas palavras. Ou, também o exílio causa perturbações às pessoas do lar, fora desse lar: foi o dia em que um professor de uma das minhas filhas convocou-me para sugerir que uma das minhas filhas devia ter aulas de inglês extras porque o seu vocabulário doméstico era pobre; para me mostrar o que ele sabia, falou-me em castelhano – que em todas as línguas da Europa denominam Espanhol, -. Perguntei, em inglês, onde tinha aprendido Castelhano e ripostou com orgulho: “Na Argentina, onde nasci e fui criado”, ainda em Castelhano. A conversa centrou-se no inglês, referi que, porém, era preciso que ele estudara inglês por lhe faltar palavras de uso social no seu vocabulário, ele ficou envergonhado. Para aliviar a tensão, referi que em casa falávamos em inglês, o que era verdade, esse acordo entre a minha mulher e eu, um falava em Castelhano, o outro em inglês para as nossas filhas foram bilingues. Tiver eu aceite a proposta do professor da nossa filha, seria uma cidadã de segunda classe e o seu inglês era perfeito. O que não é perfeito é ser cidadão de segunda classe, como acontece em todos os países cuja língua não é a nossa, mas devemos falar na língua deles. É uma das contradições do exílio. Na minha pessoal experiência, ou sou tratado com mimo por ser o coitado exilado, o com palavras duras por ser exilado socialista de Allende, pensado na Europa como Marxista Leninista e não como ele era, social democrata. O socialismo de Allende era do tipo já referido mais acima, à Gambetta.

Antes de passar as comparações, não resisto relatar nesta introdução, como hipótese, o exílio por causa de Allende e o seu Governo, foi uma organização da CIA em conivência com a ditadura do Chile. Estávamos a família toda em trabalho de campo em Vilatuxe, Galiza, por ordem e orientação do meu professor Jack Goody, de Cambridge onde eu ensinava e estava a acabar o meu doutoramento, quando a Guarda Civil Espanhola queria me apreender, em 1974, para ser enviado de volta ao Chile, no denominado avião da morte . Franco, ainda vivo, tinha assinado um convénio com o ditador do Chile, pelo qual nenhum antigo prisioneiro político chileno poderia residir livremente em solo espanhol. O meu passaporte foi-me retirado e tivemos que fugir da aldeia, cujas crianças, usos e costumes, bem como o comportamento dos seus pais, eu estudava. Cansado já de tanto fugir, de andar com a minha família sem porto de abrigo, a minha ideia foi simples: apresentei-me ao Cônsul do Chile em Vigo, de forma destemida, e relatei o meu caso. O Cônsul era cidadão espanhol e comerciante, disse-me para eu guardar silêncio no seu Gabinete, e a conversa transcorreu num café. O Cônsul temia estar sob escuta, porque era sabido que ajudava a chilenos exilados. Deu-nos um passaporte especial para todos, embarcamos num transatlântico para passar por cidadãos de posse, em viagem de prazer. Mal tornamos a entrar a Inglaterra, pedi refugio e a minha Faculdade, Trinity Hall, de imediato designou um Advogado, o nosso amigo Peter Wesley, para se encarregar de tramitar a papelada de refugiados. Foi-nos, pois, entregue o infame passaporte das Nações Unidas, que permitia, na letra, entrar a todos os países, excepto Chile. Passaporte que ainda guardo comigo. Digo na letra, devido aos factos serem diferentes: não havia fronteira na qual eu não for detido e retido, até explicar o porque do dito passaporte. Cada viagem a França para trabalhar com os meus amigos e colegas Pierre Bourdieu e Maurice Godelier, era um tormento, quer à entrada, à saída, ou na entrada de volta para Grã-bretanha. Trinity Hall teve a simpatia de me outorgar uma carta a referir que eu trabalhava na Universidade de Cambridge. Essa carta era mais forte que o infamante passaporte de exilado, das Nações Unidas! Muitos chilenos estavam orgulhosos de possuir o dito passaporte: eles não precisavam de andar em deslocações, académicas ou não.

Devo confessar que vivia em depressão, tinha medo de viajar, mas o meu trabalho era importante para a nossa subsistência e a deslocação, porém, necessária. Note o leitor a força das palavras. Dizer: “sou de Cambridge”, abria todas as portas!, ainda as de Portugal, País ao qual me desloquei por dois meses, faz já quase trinta anos. Encontrei um ISCTE com dois corredores, duas Licenciaturas, sem Doutores, e quis ficar, e fiquei. Até hoje.

Daí, tricinco, palavra do título de esta obra. De aí também tricinco, os anos de sobrevivência que tive após tentativa de fuzilamento no campo de concentração. De aí, as palavras que não resisto citar por inteiro, de Daniel Sueiro, falta de preámbulo de uma peça de teatro do, hoje falecido, exiliado chileno, Jorge Díaz , Ligeros de Equipaje, que diz: Exilio no es una palabra, ni es un drama, ni una estadística sino que es un vértigo, un mareo, un abismo, es un tajo en el alma y también en el cuerpo cuando, un día, una noche, te hacen saber que aquel paisaje tras la ventana, aquel trabajo, aquel amigo, aquella silla y aquel hueco en aquel colchón, aquel sabor, aquel olor y aquel aire que habías perdido, lo has perdido y lo has perdido para siempre, de raíz y sin vuelta. Si somos capaces de sentirlo siquiera un instante, tal vez pueda evitarse volver a caer en él nunca más .

E, daí, também, tricinco, da também falecida Violeta Parra, já referida antes e o seu “Volver a los diecisiete, después de vivir um siglo....!

Ligeiros de bagagem, ou de bagagem ligeiros, mas com uma alma muito pesada, era o que todos sentíamos, ao sairmos do Chile, rumo a esse Norte desconhecido. Esse Norte não metafórico, porque todo o mundo fica ao Norte do Chile. O Chile fica sempre ao Sul do mundo, todos os países estão ao Norte. Quando vamos viajar, é natural dizer: “Vamos p’o Norte!”. E é para o Norte que houve esse exílio maciço em 1973: ou por serem desterrados, ou por serem temidos de represálias, ou, simplesmente, vário saíram por causas económicas. Por outras palavras, era o exílio obrigatório pelo crime do “livre pensamento”, diria eu, ou para salvar a vida, ou por se inventar um crime nunca cometido, mas que arrecadava prisão ou fuzilamento. Na Grã-bretanha recebemos muitos desses casos, que Iain Wright e eu devíamos investigar. Não consigo esquecer o caso de um chileno a solicitar entrar na Escola de Medicina, por se ter fechado a Universidade onde ele estudava e ter sido expulso. É evidente não poder dar o seu nome, mas levava o a alcunha de condrepa, alcunha satírica ou metafórica de conpadre, que é ou o padrinho de baptismo do filho de um casal, ou essa metáfora de mentiroso. Como era habitual em nós, a minha mulher e eu, demos habitação na nossa casa, comida e abrigo. Acreditamos, não era possível para nós começar por suspeitar dos ofícios, trabalhos, ou actividades perdidas por causa da morte do Presidente. Suspeitar, seria a loucura final! No entanto, por causa da sua cor Mapuche, a sua maneira de falar em calão, os seus hábitos higiénicos, formas de comer, etc., começamos a duvidar e pedimos os seus papéis comprobativos dos seus estudos. Ele, astuto, disse que tinham sido queimados, o que podia ser verdade, como era para a maior parte de nós. Infelizmente, ele próprio fez o que era o seu hábito e ficou à descoberta da sua verdadeira identidade e profissão: roubava, era ladrão!. Tive que defender sua pessoa em tribunal, com a invocação de ter perdido a sua inteligência por causa do duro golpe do exílio. Essa primeira vez, ficou exonerado. As seguintes, nada mais fizemos, e, a pesar do representar, não o defendia e teve que ir para a prisão, o que danificava a causa chilena! Expliquei todo isto ao dito condrepa, mas o hábito era mais forte que as palavras de moral e ética! Andou a roubar imensas vezes e eu, nunca mais o representei. Tínhamos muito a fazer em frente de nós, para estar com essas preocupações ilegais.

Mentir passou a ser uma forma de salvação. Eu próprio tive que o fazer perante a minha família e os meus amigos, todos eles, temidos de Allende e a apoiar a ditadura. A primeira mentira, foi perante um primo directo, cuja terra tinha sido expropriada e pedia para eu usar as minhas influencias e recuperar “O Piduco”, nome da sua fazenda. Expliquei que mesmo que tiver essa atribuída influência, não era capaz de a usar por causa da minha convicção de que a terra é de quem a trabalha e não do proprietário que vive na cidade do fruto do trabalho dos seus inquilinos , ou, como se diz no Chile, fundo, o que no Brasil seria Fazenda, em Castelhano Hacienda, em Portugal, uma quinta de imensas hectares. De facto, tinha um certo poder, mas não ia trair as minhas convicções, o que expliquei. Ripostou, após de me ouvir, que ele, mal o Presidente for morto, porque morto ia ser - ele era parte do putsch, eu não sabia, como é evidente, denunciar-me-ia as novas autoridades por ser marxista –crime para a Direita do Chile e do Mundo- e muito convicto, acrescentou: “até eu fico da tua parte, sabes falar muito bem e explicar, melhor ainda”. Foi, de facto, este o meu parente consanguíneo que fez-me ir à prisão. A minha mulher disse que eu tinha sido muito duro com ele, que era a sua terra e que podia ter oferecido respostas mais amáveis. Mais tarde, a minha amada mulher, entendeu que era uma guerra. Mal fui levado ao campo de concentração, ela, grávida e doente, como estava, foi falar com o seu próprio primo Almirante e ele disse que era evidente que eu não devia estar onde estava e que ele trataria do assunto. Nada aconteceu, excepto a minha vergonha de ir a sítios temidos, como o Gabinete do Governador, nesses dias um Coronel de Exército e explicar a minha situação, com mentiras: eu não era, eu não tinha feito, eu era filho de, eu, eu, eu....O Coronel disse-me rapidamente: “Meu Senhor, não seja mentiroso, cá tenho as suas referências, dentro deste arquivo...”, e mostrou-me os dados da mina vida e actividades, livros escritos, acções feitas ao pé dos trabalhadores rurais para eles entenderem o que era ser proprietário, e outros acontecimentos que devo narrar mais em frente.
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Notas:

Iain e eu trabalhamos imenso na nossa instituição universitária, para matricular chilenos .Infelizmente, apenas um foi aceite. No entanto, em Academics for Chile, conseguimos mais, bem como resgatamos das prisões do Ditador, imensas pessoas, académicas ou não. Foi a tarefa que fez de nós parceiros para a vida. A sua morte foi chorada por mim! Não refiro a sua obra, por causa de não ter textos, apenas trabalho para Human Rights, o mais importante da sua vida e da minha. Os dois, em Amnesty International http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Iain+Wright+Queens+College+Cambridge&meta=



Uma das minhas filhas é Paula Iturra de van Emden. Tem escrito, entre outros textos, o que está e m livro e na Net: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Iain+Wright+Queens+College+Cambridge&meta= A outra, Camila Iturra, tem trabalhado em países temidos e destemidos, para salvar a Flora e a Fauna, a partir do seu Departamento de Flora and Fauna da Universidade de Cambridge. Para saber, ver o site: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Camila+Iturra&meta= Mais precisão, no site: http://www.bbc.co.uk/portuguese/cultura/story/2003/07/printable/030724_pinelmp.shtml ou no site http://camililla2007.blogspot.com/ ou ainda: http://www.fauna-flora.org/search.php?action=SEARCH&keyword=iturra&limit=50


Sobre detenidos desaparecidos, ver a tese, orientada por mim, da académica candidata ao Doutorado, Sónia Ferreira, hoje livro: Ferreira, Sónia, 2003, Editora Ela por Ela, Lisboa. Para ver texto, motor de procura Google, sítio: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=S%C3%B3nia+Ferreira+Mulheres+de+Desaparecidos&meta= ou 0 sítio específico do CEEP, Universidade Nova de Lisboa, sítio Net: http://www.fcsh.unl.pt/escoladeverao/index_ficheiros/Page5164.htm Centro que analisa, sob a orientação da Professora Doutora Paula Godinho, a minha querida e grande amiga, cujo objectivo é o de analisar os usos políticos do nosso conceito cultura, bem como do comportamento cultural ele próprio.


Jorge Díaz,, autor chileno, escreve em 1980 uma das sua varias obras de teatro Lijeros de Equipaje retirado da Net: http://www.memoriachilena.cl/mchilena01/temas/index.asp?id_ut=jorgediaz,(1930-2007) ou http://www.memoriachilena.cl/mchilena01/index.asp


Daniel Sueiro, no preambulo da peça de teatro do escritor chileno exilado e falecido, Jorge Díaz: Lijeros de Equipaje. Ver no sítio: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Jorge+D%C3%ADaz+Autor&meta=


Inquilino, é o eufemismo para denominar trabalhadores rurais não pagos, é dizer, escravos. Contra essa escravatura lutei durante muitos anos, ainda dentro das nossas terras, com será referido mais enfrente.

(Continua)

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