terça-feira, 9 de novembro de 2010

Recordando Alfredo Margarido (2)

Carlos Loures
.Até sair de Lisboa (no final de Dezembro de 1961), frequentei sempre a tertúlia do Restauração. Se o Manuel de Castro estava em dia não, tinha de aturar as suas ironias pelo meu fato, camisa branca e gravata. Estava desde o ano anterior empregado na RTP e era impensável aparecer na empresa sem gravata e sem roupa formal. Um dia em que o Manuel abusou e eu ia responder de forma irritada. O Margarido fez-me um gesto para deter a resposta e deu ao Manuel uma lição em termos duros. O Edmundo e a Manuela assentiam , a minha fúria esbateu-se. Encabulado, o Manuel ria-se e pedia «não batas mais no ceguinho». Nunca mais embirrou com a minha gravata. O Alfredo não era o mais velho do grupo, o Edmundo e o Cândido, tinham mais idade. Pertencia-lhe, no entanto, um estatuto de autoridade que ninguém contestava. Quando em 1961 organizei o terceiro e último número da revista Pirâmide, o grupo do Restauração constituiu a parte mais importante da colaboração. Alfredo Margarido colaborou com um texto sobre a obra poética de Edmundo de Bettencourt. O qual também colaborou com alguns poemas inéditos.

Como disse, saí de Lisboa e passado tempo, salvo erro em 1964, o Alfredo foi para Paris. Fomos sabendo um do outro, trocámos alguma correspondência, mas só 1984, vinte anos depois, voltámos a encontrar-nos. Um fim de tarde, o Alfredo Margarido e o Fernando Pereira Marques visitaram-me no escritório da Rodrigo da Fonseca. Jantámos, creio que no Frascatti. Depois fui pô-los às respectivas  casas. À porta do Margarido ficámos umas boas duas horas conversando, pondo as notícias em dia. Ele voltou para Paris onde era professor num instituto ligado à Sorbonne.
Quando em 1985 publiquei “Talvez um Grito”, enviei-lhe um exemplar. Passado pouco tempo estava  a escrever-me uma carta (datada de 3 de Julho): «Meu caro, só agora recebi o teu livro, assim como as revistas» (...): «o Fernando Pereira Marques deve andar enrolado na política partidária, e não se pode ser eficaz em todo os planos». Creio que se queixava do atraso do Fernando na correspondência entre eles. O Fernando ainda não estava no Parlamento. Viria a ser deputado pelo PS nas 6ª, 7ª e 8ª legislaturas, entre 1991 e 2002, mas andava já muito envolvido, como é natural nas lutas políiiticas.
Apontava-me depois alguns erros de estrutura, dizendo que, utilizando a técnica contrapontística que Huxley introduzira no romance europeu: «como sempre, manifestas o teu evidentíssimo talento literário, mas (revelas) uma escrita que não está madura e que hesita entre três direcções possíveis – o romance histórico ou iniciático, como queria o velho Lukács; e um elemento mais incerto, que seria  a de uma psicologia, senão do povo português, pelo menos do grupo restrito da pequena-burguesia que te serve de quadro e de referente existencial».
Dizia mais adiante «Diverti-me um pouco com as tuas páginas “restauracionistas”… E mostrava-se agastado pelo facto de eu ter situado no café Restauração uma tertúlia de falsos intelectuais. A personagem central, um tímido estudante de Letras, sentia-se intimidado por aquelas luminárias – isto para dar ênfase à perspicácia da personagem feminina que rapidamente, desmontou aquela aparente erudição. O Margarido supôs que estava a retratar a tertúlia verdadeira. Como se eu pudesse pensar tal coisa dele, do Bettencourt, do Manuel de Castro (de quem sempre fui tão amigo, apesar de quezílias que uma vez nos levou a uma cena de pugilato), do Cândido Costa Pinto, da Maria Manuela! Deu-me trabalho a convencê-lo e não sei se o terei conseguido completamente.
A revista de que fala é a “Questões e Alternativas” de que se publicaram quatro números e prometia colaboração embora se queixasse da falta de tempo: «ainda não cheguei ao momento de repetir que time is money, mas penso que isso se deve ao facto de não ser protestante!» E terminava prometendo «bater-me ao ferrolho» quando viesse a Lisboa. O que fez. Numa tarde em que o Fernando Pereira Marques, com vista à realização do meu livro “A Mão Incendiada” esteve, gravando o seu testemunho, a descrever-me a operação de tomada da Covilhã pela LUAR, enchendo duas cassetes, o Margarido apareceu no meu escritório e fomos os três jantar, como acontecera anos antes. Desde aí  nunca mais nos perdemos de vista.
Tive o prazer de, numa colecção por mim editada e dirigida pelo Professor Luís de Albuquerque, ter incluído um livro que escreveu de parceria com a Professora Isabel de Castro Henriques: “Plantas e Conhecimento do Mundo nos Séculos XV e XVI”, uma obra fascinante a que, quanto a mim, não foi dado o merecido relevo. Nesse jantar, Margarido falou desse trabalho (que na altura era ainda um projecto), afirmando que a «revolução biológica» operada pelos Portugueses ao levarem plantas de uns continentes para os  outros e pondo-as a competir com as espécies indígenas, foi mais importante do que a Revolução Industrial. Mais – sem a «revolução biológica» a industrial não teria existido.
Num futuro artigo, que publicarei quando aqui se dedicar uma edição à obra de Alfredo Margarido, falarei de algumas das suas obras. Nestes dois textos apenas quis referir aspectos da personalidade de um homem que, avesso às luzes da ribalta, com um feitio difícil (particularmente por não fazer concessões),  não  teve o reconhecimento que merecia, como escritor e como professor.
Um amigo excepcional que muito lamento ter perdido.

1 comentário:

  1. Já consegui que um amigo de Castelo Branco ande a averiguar o talento do Edmundo Bettencourt, transformando música da Beira Baixa em baladas Coimbrãs...

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