quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Uma nova ditadura ou “A Visita da Velha Senhora”

Carlos Loures



Continuo a inspirar-me em peças teatrais para as minhas crónicas. Depois de O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, de Um Eléctrico Chamado Desejo, de Tenessee Williams, de Tanto Barulho por Nada, de Shakespeare, chegou hoje a vez de A Visita da Velha Senhora, do escritor suíço Friederich Dürrenmatt (1921-1990), é um clássico do teatro mundial. No cinema, em 1964, a actriz Ingrid Bergman actuou no filme The Visit, inspirado na peça , realizado pelo austríaco Bernhard Wicki. Vi esta tragicomédia em 1960 no D. Maria II, numa encenação de Luca de Tena, com Palmira Bastos no principal papel.


A ideia central da peça, editada em 1956, é semelhante à de O Rinoceronte, embora com uma história  menos absurda. Neste caso, é útil contar em traços muito largos a história – Gullen, pequena cidade da Europa Central, vive mergulhada na miséria, afectada por uma terrível crise económica.

A estação de caminho de ferro está em ruínas e quase desactivada – os comboios deixaram de ter paragem em Gullen. Até que um dia as coisas mudam – Clara Zahanasian, uma das mulheres mais ricas do mundo, nascida na cidade, regressa às origens. Prepara-se-lhe uma recepção triunfal – forças vivas, criancinhas das escolas, banda de música... - o habitual.

Mas, pormenor importante, trinta anos antes Clara fora escorraçada, expulsa da cidade pelo homem que amava. Regressa, portanto, para se vingar. Oferece ajuda aos habitantes da cidadezinha, reduzidos à mais negra miséria, se deixarem de ser amigos do seu ex- amante.

E este, Alfredo Shill, o homem mais popular e estimado da cidade assiste à debandada dos amigos. Não me lembro (não tenho a peça à mão) se este pormenor constitui rubrica expressa de Dürrenmatt ou se foi uma criação da encenação de Luca de Tena - os que se rendiam á velha senhora  iam aparecendo calçando sapatos amarelos. A velha senhora, selava o acordo com os que se vendiam obrigando-os a calçar esses sapatos. Até que Alfredo Shill fica sozinho… Todos se venderam.

*

Em Abril de 1974 expulsámos a ditadura e com ela quisemos expulsar também os privilégios de classe. Tivemos a ilusão bem patente nos textos, poemas, canções da época, para não falar nos comunicados partidários, de que tudo ia mudar. E, ébrios de liberdade, cometemos excessos, fizemos disparates… Sobretudo pregámos um susto de todo o tamanho à senhora.

Foram 18 meses de euforia. O coração não nos cabia no peito, pois tinha agora o tamanho e o fogo de um sol. A «normalidade», voltou em Novembro de 1975.

Normalidade é o apelido preferido da velha Senhora.


*

Quando digo que compreendo a urgência de fazer cair este governo, dito socialista, compreendo mesmo. Estamos bloqueados num lodaçal de corrupção, de clientelismo, de nepotismo, de negociatas obscuras. Bem sei que falta provar quase todas as acusações, já se viu que algumas foram mesmo forjadas, mas com tanto fumo algum fogo haverá. É preciso sair deste bloqueio. No entanto, quando digo sair, falo de erradicar todas estas doenças que afectam a nossa democracia. Que a afectam ao ponto de termos de pensar duas vezes antes de continuarmos a designá-la por esse nome.

O que estão a fazer, partidos e sindicatos que se opõem ao actual governo não é isso. O que se está a fazer é a desgastar a credibilidade deste governo (embora me pareça difícil desgastar algo que já não existe), e substituí-lo por outro que, com outras pessoas é certo, continuará na mesma senda de desonestidade, desbaratamento do erário público, favorecimentos ilícitos, corrupção desbragada… Porque ninguém me venha dizer que com o PSD as coisas vão melhorar. Se o governo for derrotado, o discurso de abertura do novo executivo será a declarar que a pesada herança legada pelos governos PS, deixaram o País de rastos e que é preciso pedir mais sacrifícios aos cidadãos –. Isto enquanto o PS se reabilita, mudando de secretário-geral e preparando-se para as eleições seguintes, vai desgastando o governo do PSD. Faz-me lembrar aquele livro para jovens do escritor alemão Michael Ende -- A História Interminável.

Não me venham também os senhores do Partido Comunista, do Bloco de Esquerda, da Intersindical, dizer que fazer cair o governo é um objectivo primordial, que essa é a principal tarefa da esquerda. A tarefa da esquerda, se existisse como tal, seria a de derrubar este sistema bipartidário, a de romper este círculo vicioso, este circo corrupto e infernal em que encontramos encerrados. O que é prioritário é lutar pela criação de uma sociedade livre de corrupção e de oportunismo. Lutar contra o PS, claro, mas sem esquecer que o PSD é um gémeo e que substituir um pelo outro é nada mudar. Ambos, têm de ser combatidos em bloco como se fossem um só (e para muitos efeitos, são-no). Ao enveredar por este tipo de luta, a esquerda está a colaborar com o sistema - a legitimá-lo.

Porque quem define como prioritária a queda do PS, sabendo que é o PSD que lhe vai suceder, visa a perpetuação do sistema. Derrubar Sócrates, sim. Substituí-lo por Pedro Passos Coelho, por exemplo? Para quê?– é um pavão sereno convencido da sua importância e, se for eleito, logo será rodeado pelos corruptos, pelo incompetentes, do seu partido. Repito o que disse há dias: a ausência de pensamento, levou-nos durante 50 anos a aceitar uma ditadura fascista e leva agora pessoas inteligentes a aceitar como normais todas as anormalidades que transformam a nossa democracia representativa num novo fascismo – ou seja, numa oligarquia em que dando aos cidadãos o direito de escolher o faz segundo o princípio de Henry Ford - Os clientes podem escolher um carro qualquer cor, desde que seja preto”. Nós podemos escolher o governo que quisermos, desde que escolhamos entre a pior gente do PS ou do PSD, os empregados dos grandes grupos económicos e dos interesses do grande capital.


É uma nova ditadura. A velha senhora expulsa em 1974, quer vingar-se das afrontas e dita as suas leis. Adoptou um apelido – Democracia - «querem sobreviver e salvar a democracia? Esqueçam os princípios democráticos»


E um a um os sapatos amarelos vão aumentando.

1 comentário:

  1. É assim, sem dúvida, mas temos que avançar com alternativas. Bloqueado o sistema pelos partidos (que nasceram num contexto que já não existe) há que forjar na sociedade civil movimentos de cidadãos que façam o contraponto do poder absoluto dos partidos.No outro dia descobri que até Associações como as dos pais dos alunos, que deveriam ser independentes do poder, são subsidiados com uns largos milhares de contos. paga-se a tudo e a todos para que nada mexa. são precisos cidadãos impolutos , independentes,empresários que não precisem do governo, só assim lá vamos. A ditadura não é da democracia é dos partidos. deles todos. vejam como todos se unem para bloquear a candidatura de Nobre, só como exemplo. vejam como os novos partidos que aparecem são assassinados no ninho...

    ResponderEliminar