segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Alberto Santos-Dumont (1873-1932) - 1

Carlos Loures






Urubu voa? Homem voa?


Nas tardes quentes da fazenda do engenheiro Dumont, em Ribeirão Preto, São Paulo, os meninos brincam. Estamos no princípio dos anos oitenta do século XIX. Na Rússia, o czar Alexandre II foi assassinado, sucedendo-lhe Alexandre III, e Dostoievski escreve Os Irmãos Karamazov. O reino da Sérvia é proclamado e a Itália junta-se à Alemanha e à Áustria na Triplíce Aliança. Wagner compõe o Parsifal, morrendo dois anos depois. Marx morre também. A linotipia é inventada. No Brasil, reina o imperador Pedro II, há ainda feridas e soam os ecos da vitória sobre o Paraguai na última das guerras platinas, os mações e os republicanos conspiram, a abolição da escravatura divide a sociedade brasileira. Já em 1871, a promulgação da Lei do Ventre Livre libertara os filhos de escravos nascidos a partir de então. O caminho-de-ferro vai abrindo novas comunicações, as indústrias surgem pelo país, há conflitos entre o Estado e a Igreja. Tudo isto são coisas que interessam muito ao engenheiro Dumont e aos amigos que aos serões se reúnem na fazenda e discutem estes temas com ar grave, cofiando bigodes, alisando barbas, bebendo um cordial e fumando olorosos charutos. Os jornais de São Paulo todos os dias renovam ou reacendem os assuntos.

Porém, nenhum destes importantes acontecimentos preocupa os meninos que brincam na varanda da fazenda. Estão a jogar ao jogo das prendas. Um deles pergunta: - Voa o gato? Todos gritam: - Não! - Voa o urubu? Levantam os braços: Voa! Voa o carcará? - Voa! - Voa o homem? Todos menos um gritam: - Não! Alberto, um dos filhos do engenheiro, levanta os braços e grita: Voa! Risadas dos irmãos e dos outros meninos. Alberto tem de pagar uma prenda. Ri-se com os outros, mas teima: - Um dia, o homem há-de voar!


O seu mestre Júlio Verne diz-lhe que sim, que o homem voa. Sua irmã Virgínia ensinou-o a ler. Frequenta agora o Colégio, mas todos os tempos livres são passados a devorar as páginas de Cinco Semanas em Balão, de Da Terra à Lua, de Vinte Mil Léguas Submarinas ou daVolta ao Mundo em Oitenta Dias. Phileas Fogg ou o Capitão Nemo são personagens com quem convive no seu dia-a-dia. Nas páginas de Verne, o homem voa já, até mesmo para fora do planeta. Alberto sabe que não faltará muito para que nos céus da realidade o homem voe também.


Na fazenda, Alberto observa as máquinas. As lavadeiras, o descascador, o separador, o ensacador onde o café faz o seu percurso desde a plantação até aos sacos em que seguirá nos vagões do caminho-de-ferro. Vendo as pesadas locomotivas a vapor, conclui que nunca será com máquinas assim que o homem poderá voar. À mente do jovem sonhador acorrem as lendas de Dédalo, Ícaro e Ariel, a história de Olivier de Malmesbury, o monge inglês que, no século XI, construiu um par de asas e com elas se lançou do alto de uma torre, quebrando as pernas, os desenhos de Leonardo da Vinci sobre as estrutura das asas dos pássaros, os músculos que as movem, a função das penas, a tentativa de Bartolomeu de Gusmão que, em 1709, se eleva a 200 pés de altura nos céus de Lisboa, perante a pasmada corte de D. João V, na sua Passarola, ou a «máquina de andar pelos ares», como também lhe chamava, as experiências dos irmãos Montgolfier, a morte de Pilâtre de Rozier ao tentar atravessar a Mancha em balão... Uma das suas brincadeiras favoritas é a de lançar papagaios e de correr, segurando a corda, fazendo-os voar. Nas noites de São João, ele e outros meninos constroem balões de papel. Quando os soltam, fica a vê-los perder-se no céu escuro, uma pequena e luminosa mancha colorida, que o ar quente da mecha faz subir. Em 1888, ano em que a escravatura é abolida no Brasil, visita com a família São Paulo. Numa feira vê, deslumbrado, pela primeira vez um homem voar: um acobrata estrangeiro sobe num balão e lança-se depois em pára-quedas.






Subitamente, Paris


1891. Ao percorrer a fazenda, o engenheiro Dumont dá uma terrível queda do cavalo. Fica com as pernas paralisadas. Vende a propriedade e volta a Paris, à cidade de seu pai e onde estudara e se formara na École Centrale des Arts et Métiers. Alberto vai fazer dezoito anos e Paris deslumbra-o. Com o pai vai visitar a Exposição do Palácio das Indústrias. É aí que, pela primeira vez vê um motor de combustão interna. Irá dizer mais tarde: «Qual não foi o meu espanto quando vi pela primeira vez um motor a petróleo, da força de um cavalo, muito compacto e leve, em comparação aos que eu conhecia... funcionando! Parei diante dele, como que pregado pelo destino». Maravilhas como aquela andam já pelas ruas, dentro dos raros automóveis que circulam. Alberto compra um Peugeot. Regressa ao Brasil e o seu carro, percorrendo São Paulo, é um dos primeiros que chegam ao Brasil. Quando passeia nele, o fumo, o ruído desengonçado do motor, o cheiro do combustível queimado, as buzinadelas, causam sensação - tudo pára para ver passar o automóvel. Porém para o jovem Alberto o automóvel é mais do que uma frivola excentricidade de menino rico. Entende que naquele motor, bem mais leve que o das locomotivas a vapor, poderá estar a solução para o problema que lhe ocupa a mente: a criação de uma máquina que permita finalmente ao homem voar. Pede ao pai que o deixe regressar a França. O velho engenheiro não só anui, como resolve doar dois terços da sua fortuna aos filhos. Vai ainda mais longe: concede a emancipação jurídica a Alberto antes mesmo de ele completar os dezoito anos. Diz-lhe: «- Hoje dei-lhe a liberdade. Aqui está mais este capital. Tenho ainda alguns anos de vida: quero ver como você se porta». E faz-lhe as naturais recomendações de prudência, dando-lhe conselhos sobre a maneira de economizar a fortuna que agora recebe. Não vá ele em algumas horas gastar o rendimento que, bem governado, poderá permitir-lhe viver durante um ano.


Alberto promete ser prudente e poupado.






Uma doença chamada aerite




Quando chega a Paris, com a ajuda dos primos franceses, procura um professor. Encontra-o na pessoa do Sr. Garcia, um «respeitável preceptor de origem espanhola que sabia tudo». Com ele, Alberto estuda durante diversos anos. Nos livros encontra o nome dos franceses que se ocupam de temas aeronáuticos. Recorrendo ao Anuário Bottin, vai-os localizando. Alguns desinteressaram-se da matéria e e outros estão assustados com os custos das investigações ou com os perigos das ascensões. Um deles, porém, mantém-se em actividades e pede-lhe 1000 francos para o levar numa subida, com a condição de Dumont se responsabilizar pelos estragos que o balão provoque ao pousar em terra. É uma condição perigosa, pois Alberto sabe que o balonista derrubou já a chaminé de uma fábrica e, de outra vez, desceu em cima da casa de um camponês, incendiando-a quando o gás do balão entrou em contacto com a chaminé. Lembra-se das recomendações do pai sobre sobriedade e economia. Não faz a ascensão. Sente-se desanimado.


Nos anos seguintes estuda e viaja com frequência. Está atento às novidades e é no Rio de Janeiro que recebe um livro onde o engenheiro Lachambre descreve um balão por si construído. Alberto volta a Paris e procura Lachambre. Este mostra-lhe um pequeno balão que concebeu e pede-lhe 250 francos pela ascensão. Garante-lhe que não há perigo e que o aeronauta, um sobrinho seu, é cuidadoso, pois subiu dezenas de vezes e nunca provocou estragos. Alberto sente-se novamente encorajado. Marca a subida para o dia seguinte.


«Fiquei estupefacto diante do panorama de Paris visto de grande altura; nos arredores, campos cobertos de neve... Era Inverno.»...«Durante toda a viagem acompanhei a viagem do piloto; compreendia perfeitamente a razão de tudo quanto ele fazia. Pareceu-me que nasci mesmo para a aeronáutica. Tudo se me apresentava muito simples e muito fácil; não senti nem vertigem, nem medo.» «E tinha subido!». Como ele diz, sofre de aerite, «doença» que nunca mais o deixará.


Vai agora dividir o seu tempo entre subidas em balão (em 1898 sobe mais de trinta vezes) e as corridas de automóvel em que participa. Substituiu já o seu velho Peugeot por um potente De Dion, o mais rápido da altura: chega a dar a velocidade de 30 km à hora. Encomenda um balão a Lechambre inteiramente desenhado por si: seis metros de diâmetro, invólucro em seda envernizada, capacidade para 113 metros cúbicos de gás, com 14 quilos de peso. A rede que nos balões convencionais chega a pesar 50 quilos, pesa neste menos de dois; a barquinha que, normalmente, pesa 20 quilos, pesa seis... É tão pequeno que cabe numa mala de viagem. Por aqui se vê que se trata de um balão revolucionário.

Dumont baptiza-o: Brasil.


(Continua)

(Excerto da biografia publicada em "Vidas Lusófonas")



___________

1 comentário: