sábado, 25 de dezembro de 2010

Boaventura de Sousa Santos no Estrolabio - Porque é que Cuba se transformou num problema dfícil para a esquerda? (2


(Continuação)


Que fazer?

A discussão precedente mostra que Cuba é um “problema difícil” para aquela esquerda que, sem abandonar o horizonte do pós-capitalismo ou socialismo, evoluiu muito nos últimos cinquenta anos. Das linhas principais dessa evolução o povo cubano poderá retirar a solução do problema apesar da dificuldade deste. Ou seja, a revolução cubana, que tanto contribuiu para a renovação da esquerda sobretudo na primeira década, poderá agora beneficiar da renovação da esquerda que ocorreu desde então. E, ao fazê-lo, voltará dialecticamente a assumir um papel activo na renovação da esquerda. Resolver o problema difícil implica, assim, concretizar com êxito o seguinte movimento dialéctico: renovar Cuba renovando a esquerda; renovar a esquerda renovando Cuba.


Principais caminhos de renovação da esquerda socialista nos últimos cinquenta anos

1 - Nos últimos cinquenta anos agravou-se uma disjunção entre teoria de esquerda e prática de esquerda, com consequências muito específicas para o marxismo. É que enquanto a teoria de esquerda crítica (de que o marxismo é herdeiro) foi desenvolvida a partir de meados do século XIX em cinco países do Norte global (Alemanha, Inglaterra, Itália, França e EUA), e tendo em vista particularmente as realidades das sociedades dos países capitalistas desenvolvidos, a verdade é que as práticas de esquerda mais criativas ocorreram no Sul global e foram protagonizadas por classes ou grupos sociais “invisíveis”, ou semi-invisíveis, para a teoria crítica e até mesmo para o marxismo, tais como povos colonizados, povos indígenas, camponeses, mulheres, afro-descendentes, etc.3 Criou-se assim uma disjunção entre teoria e prática que domina a nossa condição teórico-política de hoje: uma teoria semi-cega correndoparalela a uma prática semi-invisível.4

Uma teoria semi-cega não sabe comandar e umaprática semi-invisível não sabe valorizar-se. À medida que a teoria foi perdendo na prática o seu papel de vanguarda – já que muito do que ia ocorrendo lhe escapava completamente5 – paulatinamente foi abandonando o estatuto de teoria de vanguarda e ganhando um estatuto completamente novo e inconcebível na tradição nortecêntrica da esquerda: o estatuto de uma teoria de retaguarda. De acordo com o sentido que lhe atribuo, a teoria da retaguarda significa duas coisas. Por um lado, é uma teoria que não dá orientação com base em princípios gerais, ou seja, leis gerais por que supostamente se rege a totalidade histórica, mas antes com base numa análise constante, crítica e aberta das práticas de transformação social. Deste modo, a teoria de retaguarda deixa-se surpreender pelas práticas de transformação progressistas, acompanha-as, analisa-as, procura enriquecer-se com elas, e busca nelas os critérios de aprofundamento e de generalização das lutas sociais mais progressistas. Por outro lado, uma teoria de retaguarda observa nessas práticas transformadoras tanto os processos e actores colectivos mais avançados, como os mais atrasados, mais tímidos e porventura prestes a desistir. Como diria o Sub-Comandante Marcos, trata-se de uma teoria que acompanha aqueles que vão mais devagar, uma teoria que concebe os avanços e os recuos, os da frente e os de trás, como parte de um processo dialéctico novo que não pressupõe a ideia de totalidade, antes postula a ideia de diferentes processos de totalização, sempre inacabados e sempre em concorrência. De acordo com a lição de Gramsci, é este o caminho para criar uma contra-hegemonia socialista ou, como no caso cubano, para manter e reforçar uma hegemonia socialista.

Apenas para me limitar a um exemplo, os grandes invisíveis ou esquecidos da teoria crítica moderna, os povos indígenas da América Latina — ou, quando muito, visíveis enquanto camponeses — têm sido um dos grandes protagonistas das lutas progressistas das últimas décadas no continente. Da perspectiva da teoria convencional da vanguarda, toda estainovação política e social teria interesse marginal, quando não irrelevante, perdendo-se assim a oportunidade de aprender com as suas lutas, com as suas concepções de economia e de bem-estar (o suma kawsay dos Quechuas ou suma qamaña dos Aymaras, o bom viver), hoje consignadas nas Constituições do Equador e da Bolívia, com as suas concepções de formas múltiplas de governo e de democracia – democracia representativa, participativa e comunitária, como está estabelecido na nova Constituição da Bolívia. A incapacidade de aprender com os novos agentes de transformação acaba por redundar na irrelevância da própria teoria.

2 - O fim da teoria de vanguarda marca o fim de toda a organização política que assentava nela, nomeadamente o partido de vanguarda. Hoje, os partidos moldados pela ideia da teoria da vanguarda não são nem de vanguarda, nem de retaguarda (como a defini acima).
São, de facto, partidos burocráticos que, estando na oposição, resistem vigorosamente ao status quo, não tendo contudo alternativa; e, estando no poder, resistem vigorosamente a propostas de alternativas. Em substituição do partido de vanguarda há que criar um ou mais partidos de retaguarda que acompanhem o fermento de activismo social que se gera quando os resultados da participação popular democrática são transparentes, mesmo para os que ainda não participam e assim são seduzidos a participar.

3 - A outra grande inovação dos últimos cinquenta anos foi o modo como a esquerda e o movimento popular se apropriaram das concepções hegemónicas (liberais, capitalistas) de democracia e as transformaram em concepções contra-hegemónicas, participativas,deliberativas, comunitárias, radicais. Podemos resumir esta inovação afirmando que a esquerda decidiu finalmente levar a democracia a sério (o que a burguesia nunca fez, como bem notou Marx). Levar a democracia a sério significa não só levá-la muito para além dos limites da democracia liberal, mas também criar um conceito de democracia de tipo novo: a democracia como todo o processo de transformação de relações de poder desigual em relações de autoridade partilhada. Mesmo quando não anda associada à fraude, ao papel decisivo do dinheiro nas campanhas eleitorais ou à manipulação da opinião pública através do controlo dos meios de comunicação social, a democracia liberal é de baixa intensidade uma vez que se limita a criar uma ilha de relações democráticas num arquipélago de despotismos (económicos, sociais, raciais, sexuais, religiosos) que controlam efectivamente a vida dos cidadãos e das comunidades. A democracia tem de existir, muito para além do sistema político, no sistema económico, nas relações familiares, raciais, sexuais, regionais, religiosas, de vizinhança, comunitárias. Socialismo é democracia sem fim.
Daqui decorre que a igualdade tem muitas dimensões e só pode ser plenamente realizada se a par da igualdade se lutar pelo reconhecimento das diferenças, ou seja, pela transformação das diferenças desiguais (que criam hierarquias sociais) em diferenças iguais (que celebram a diversidade social como forma de eliminar as hierarquias).

4 - Nas sociedades capitalistas são muitos os sistemas de relações desiguais de poder (opressão, dominação e exploração, racismo, sexismo, homofobia, xenofobia). Democratizar significa transformar relações desiguais de poder em relações de autoridade partilhada. As relações desiguais de poder actuam sempre em rede e, por isso, raramente um cidadão, classe ou grupo é vítima de uma delas apenas. Do mesmo modo, a luta contra elas tem de ser em rede, assente em amplas alianças onde não é possível identificar um sujeito histórico privilegiado, homogéneo, definido a priori em termos de classe social. Daí a necessidade do pluralismo político e organizativo no marco dos limites constitucionais sufragados democraticamente pelo povo soberano. Na sociedade cubana as relações desiguais de poder são diferentes das que existem nas sociedades capitalistas mas existem (mesmo que sejam menos intensas), são igualmente múltiplas e igualmente actuam em rede. A luta contra elas, feitas as devidas adaptações, tem igualmente que pautar-se pelo pluralismo social, político e organizativo.

5 - As novas concepções de democracia e de diversidade social cultural e política enquanto pilares da construção de um socialismo viável e auto-sustentado exigem que se repense radicalmente a centralidade monolítica do Estado, bem como a suposta homogeneidade da sociedade civil.6

2 comentários:

  1. Este artigo tem que vir as lume mais vezes. Embora o seu principal objecto seja a sociedade cubana, adapta-se perfeitamente à reflexão que, por todo o mundo e, muito particularmente,nós, os do chamado mundo ocidental, temos que fazer sobre a esquerda e o caminho a seguir. Lembra-me as teses do Alain Touraine.

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  2. "...que se repense a centralidade monolitica do Estado e a suposta homogeneidade da sociedade civil...".Na mouche!

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