segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Carlos Drummond de Andrade vem ao Terreiro da Lusofonia

trazendo "O amor natural"


Manuel Simões e Carlos Loures



O grande poeta brasileiro (1902-1987) é por demais conhecido e a sua obra (lembremos apenas Sentimento do Mundo ou A Rosa do Povo) faz parte do património das literaturas de língua portuguesa. Há uma dimensão, porém, não muito frequentada pela crítica e que se refere a um volume de poesia, O Amor Natural, até pelo modo, quase clandestino, como foi publicado. Em Agosto de 1985, a um jornalista que lhe pedia notícias sobre o livro, Drummond respondeu-lhe que não tinha intenção de publicar os seus versos eróticos, receando que o leitor os considerasse pornográficos.

Na verdade, o volume já tinha sido publicado em 1981 numa edição reservada de apenas dois exemplares, um dos quais entregue ao escritor argentino Manuel Graña Etcheverry, crítico literário e genro do poeta. O outro exemplar foi submetido à apreciação de outros amigos e estudiosos, que o avaliaram com apreço, mas Drummond continuou a mantê-lo em silêncio.

Só em 1992, cinco anos depois da morte do Autor, é que se publicaram os poemas e logo nesse ano saiu uma edição holandesa e outra portuguesa. Estava desfeito o temor do poeta sobre o modo como os brasileiros teriam recebido o livro (Prémio Jabuti para o melhor livro do ano) e, de resto, é surpreendente que o Drummond irreverente e anticonformista tivesse tido receio de transgredir os códigos culturais dos leitores e as convenções sociais pequeno-burguesas de que ele tantas vezes escarneceu na sua obra.

Nos quarenta poemas da colectânea, todos dedicados ao tema de Eros, o leito parece substituir Itabira (onde nasceu o poeta) para se tornar o lugar onde o amor exerce o seu poder para reconstituir a perdida unidade do Homem.

De O Amor Natural transcreve-se aqui o poema de abertura:

Amor – pois que é palavra essencial

Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?


Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

(Recolha e texto de abertura de Manuel Simões)

1 comentário:

  1. Há um documentário, magnífico e comovente, creio que realizado por um casal de cineastas holandeses, com o mesmo título do livro e com base num dos poemas nele contidos (se me não falha a memória). Tive a sorte de o ver (inesperadamente, em substituição de um filme que - felizmente! - se atrasara...) na abertura de um dos saudosos festivais da Malaposta (já lá vão uns bons anos) e de o ter gravado, quando a RTP2 - em tempos de qualidade de programação que parece que dificilmente voltará a atingir - o transmitiu (não sei é em que estado está a gravação, dadas as más condições de armazenamento que a minha casa proporciona...). O poema é lido, sobretudo por pessoas "mais velhas", leitura quase sempre (ou sempre?) acompanhada por testemunhos dos "leitores" sobre a sua própria vivência da sexualidade, tocando, em simultâneo, através dessas histórias pessoais, aspectos da vida carioca. Contém alguns testemunhos sobre o próprio poeta, cuja viúva é uma das pessoas que lê o poema, numa cena filmada (e montada) com um rigor, sobriedade e delicadeza notáveis: aliás, a"presença" dos autores quase não se faz sentir, em todo o filme... Tenho pena de não poder indicar uma via para que possam ver esse belíssimo filme, limitando-me a deixar a referência e o voto: se alguma vez houver tal oportunidade, que ninguém a desperdice!
    Paulo Rato

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