quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Coisas do Porto

Eva Cruz

A minha mãe morreu com 101 anos. Teria hoje 103 se fosse viva.
Viveu de recordações. Mesmo muito velhinha contava, cantava, fazia rimas e versos e numa semi-lucidez foi feliz e fez os outros felizes até ao fim.
Nas suas recordações, o Porto, onde viveu a sua mocidade, estava sempre vivo.
Retirei de um livro que escrevi sobre a sua vida e que não é nada mais nada menos do que um baú de recordações que tive a coragem de abrir, este texto:
Aurora passou toda a mocidade na Quinta dos Três Castelos.
» Foram os tempos mais lindos da minha vida. Tive uma novice como ninguém. À noite recebíamos senhoras e senhores da alta roda do Porto. Até um senhor francês, Monsieur Valladier, mais tarde professor da tua mãe. Vinha todas as noites ensinar francês à minha prima. Íamos também ao cinema e ao teatro Sá da Bandeira, antes Príncipe Real. Os meus tios nunca saíam connosco. Acompanhavam-nos o meu primo e a esposa. Vi o Amor de Perdição, as cartas de Simão e Teresa lançadas ao mar por Mariana. A minha prima Laurindinha até chorou. Adeus! À luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão!.
Na rua Trinta e Um de Janeiro havia, antes de eu estar no Porto, o teatro Baquet que
ardeu por completo. Um dia, contavam os meus tios, estavam preparados uns amigos, pais e filha, para irem ao teatro. A menina mostrou-se indisposta e foi uma desmancha-prazeres. Naquela noite, apesar da insistência dos pais, ficaram em casa, e nessa mesma noite deu-se uma das maiores tragédias da cidade do Porto. O teatro Baquet ardeu por completo e lá morreu muita gente queimada. Quando ao outro dia se soube a notícia, os pais beijaram a filha, de contentes. Vê lá tu, ela assim salvou a vida aos três. A criança adivinhou a tragédia que se ia dar.
* És muito tolinha, avó, a menina não adivinhou nada, calhou assim, avó, calhou assim.
» Há coisas que ninguém sabe explicar.
* E tu sabes, avó?
» Não sei tudo mas há coisas que tu não sabes e eu sei. Está mas é caladinho e não digas a ninguém que vais daqui!
O teatro Baquet, na Rua Trinta e Um de Janeiro foi construído em meados do século XIX e passados vinte anos, um terrível incêndio reduziu-o, realmente, a cinzas e destroços. Morreram cerca de duas centenas de pessoas.
O incêndio começou no palco. Uma bambolina foi incendiada por uma gambiarra. Um actor ainda gritou para cortarem uma corda da bambolina mas a desorientação foi tal que o incêndio alastrou e tomou proporções desastrosas. No alvoroço, os espectadores correram para as portas de saída que, por azar, eram de abrir para dentro. No desespero esmagaram-se uns contra os outros. Foram dadas ordens para desligar o gás, como medida de segurança, mas o escuro aumentou o pânico e só o clarão sinistro do incêndio passou a iluminar aquele inferno. Foi um tal horror que pôs de luto a cidade inteira, e durante gerações o Porto não esqueceu a tragédia do incêndio do teatro Baquet. Aurora lembra-se de uns versos que correram na época, mas lamentava não os saber de cor, ela que tanto gostava de rimas e a propósito de tudo ou nada rimava.
Na verdade, entre os muitos textos escritos nos jornais da época, alguns poemas do jornal Charivari mostram o sentimento público perante tal tragédia:
É triste a nossa tarefa
N’este momento de lucto
Também pagamos tributo
Á mágoa que vai lá fora.
Não póde ter nossa penna
Zombeteiras ironias
Perante as magoas sombrias
D´uma cidade que chora.

Envolve a cidade inteira
Da morte o manto funerio.
As vallas do cemiterio
Abrem-se tôrvas, hiantes.
Sente-se um vento de morte
Estranho, frio, gelado,
Sobre o montão desolado
Das ruinas fumegantes.

Ha pranto nos nossos olhos
Tristeza infinda na alma
E tão cedo não se acalma
A magoa que nos invade.

Tamanha dôr e pavor
Nos punge n’este momento
Que em ondas de sentimento
Choramos com a cidade.

(ilust. Adão Cruz)

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