sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Graça, Almofala, Samarcanda...

Carlos Loures

Tenho gratas recordações dos dias da guerra.

Soube depois ter sido um tempo terrível, de grandes privações, de racionamento dos bens essenciais, mesmo de penúria; e de falta de liberdade, circunstâncias que vinham já de trás e se mantiveram por mais três décadas. Em suma, um período considerado triste e cinzento. Porém, para mim, foi um tempo muito feliz e colorido. Para quem tem quatro ou cinco anos, as contingências políticas e as dificuldades económicas são conceitos mais do que abstractos. São inexistentes. Tendo nascido durante a guerra e em plena ditadura, nunca conhecera tempos melhores nem mais prósperos. À falta de referências, de elementos que me permitissem comparar o antes com o agora, o que para os mais velhos era anormal e penoso, para mim era normal e muitas vezes agradável. Claro que, com as vagas recordações da infância, misturamos frequentemente informações que nos chegam posteriormente ao conhecimento e que vão consolidar e dar forma a ténues, a evanescentes imagens, a difusas lembranças, a fugazes sensações infantis, transformando-as, por vezes, em sólidas convicções. Numa palavra, transformando essas nebulosas recordações naquilo a que passamos a chamar memória.

Estávamos, eu, a minha mãe e o meu pai, a viver provisoriamente no bairro da Graça. A minha avó paterna, uma viúva, tinha uma casa relativamente grande na Baixa, mas uma desavença entre ela e o meu pai, ambos com orgulho e mau feitio a mais, tinha levado a que pedíssemos asilo ao meu avô materno, também ele viúvo, velho operário da Fábrica dos Tabacos, autodidacta, grande bebedor de vinho tinto e compulsivo devorador de livros. Os proventos eram parcos, pois resumiam-se ao vencimento do meu pai, modesto funcionário público. Por isso, o aluguer de uma casa estava fora de questão. E ali estava eu, a menos de dois quilómetros de distância da minha pombalina aldeia natal. Porém, aos meus olhos aquilo era outro planeta.

O meu avô morava ao fundo da Rua dos Sapadores, numa esquina da Bartolomeu da Costa, perto da Calçada dos Barbadinhos, designação alternativa para os frades Capuchinhos. A nossa casa ficava a poucos metros do muro do Quartel de Telegrafistas e, dos toques de cornetim aos gritos das sentinelas, tudo era novo e fascinante. Ouviam-se também ali melhor os pregões das varinas, das vendedeiras de figos, de fava-rica. Da janela, via-se o Bairro América e, ao fundo, o mar da Palha. Havia as bichas para comprar géneros de primeira necessidade – batatas, azeite, arroz, manteiga, leite... Um guarda da polícia era ali célebre pela sua ferocidade na manutenção da ordem dessas bichas – era o Nove Dedos. Batia desalmadamente nas donas de casa que não respeitassem o seu lugar na fila. O Nove Dedos ia ganhando proporções de ser mitológico na minha imaginação infantil. Por isso, fiquei muito desiludido quando um dia, à janela, ao colo de minha mãe, ela mo apontou. Quando eu esperava ver um ogre disforme, com nove dedos tentaculares e gigantescos, deparou-se-me apenas um homem. Vestido à civil, tinha um ar normalíssimo. Para polícia, claro.

A guerra, para mim, além do terrível Nove Dedos e das senhas de racionamento que tinham de ser carimbadas na Junta de Freguesia, eram também as janelas cobertas por fitas de papel dispostas em quadrícula (para evitar os estilhaços em caso de bombardeamento, soube depois). Eram os dinossáuricos balões de barragem que levantavam do Campo de Santa Clara e que se erguiam sobre os céus da Graça como seres fantásticos e que foram outra desilusão quando o meu avô, num domingo de manhã, mos mostrou, inertes no solo, desinflados, meros e inertes pedaços de lona. A guerra eram as noites de blackout, com os legionários a gritar pelas ruas «Apaga a luz!». Gostava particularmente destas noites porque ficava à janela a ver o bailado dos projectores buscando imaginários bombardeiros e a ouvir o gemido lancinante das sirenes. Era ainda a rádio, a BBC, dando notícias, com os meus pais e o meu avô a comentá-las com ar grave e preocupado. Eu imaginava que os aparelhos de rádio eram povoados por minúsculos gnomos que, lá dentro, cantavam e falavam. E olhava, temeroso, a luz avermelhada que vinha da parte de trás do aparelho projectar-se na parede da sala a que ele se encostava.

Mas a guerra era também os passeios, pela mão da minha mãe, até ao outro extremo de Sapadores, descendo depois a Rua da Graça, onde ficavam as principais lojas e onde ela se demorava a ver montras e a nada ou quase nada comprar. Às vezes comprava-me um bolo na Pastelaria Mimosa, ao lado de uma garagem, quase na esquina com a Angelina Vidal. Com o meu pai passeava sobretudo aos domingos de manhã. Íamos até ao Largo da Graça, onde ele comprava o jornal e se sentava a lê-lo num banco do jardim e eu me entretinha a correr atrás dos pombos. Algumas vezes íamos à noite os três ao Cinema Royal, onde víamos dois filmes. Arreliava-me a rapidez com que passavam as legendas, não me dando tempo a que as lesse. A minha mãe ensinara-me a ler pela Cartilha Maternal, de João de Deus. Aos quatro anos lia não só as titulares dos jornais, como as letras mais pequenas. Não era nenhum fenómeno, mas causava alguma sensação nos serões familiares. Sobretudo, provocava um imenso orgulho ao meu avô, que, quando aos sábados à tarde me levava a passear pela Feira da Ladra, exibia os meus dotes perante os amigos. Numa tenda de comes e bebes, eles diante de copos de vinho e de carapaus fritos, eu às voltas com um bolo de amendoim e um pirolito, sempre congeminando que havia de existir uma forma mágica de extrair o berlinde sem partir a garrafa.

Outro deleite era o folhear dos livros do meu avô, as enciclopédias, o Dom Quixote ilustrado pelo Gustave Doré. Foi numa enciclopédia que li pela primeira vez o fascinante vocábulo troglodita. Comecei por ter hesitações fonéticas – «tróglodita?», «troglódita?». Resolvido esse problema bicudo, consegui tirar a limpo o significado, após perguntas que fui fazendo aos adultos, pois o conteúdo da entrada enciclopédica era confuso, com muitas palavras que não faziam parte do meu léxico. Numa das primeiras reuniões do meu avô e dos amigos a que assisti (das quais já adiante falarei), a exibição teve lugar:

– Menino, o que é um troglodita?

– Um troglodita é um homem das cavernas.

Nem queiram saber o esforço que fiz para chegar a esta síntese.

Ele não fez comentários. Limitou-se a olhar para a assembleia. As cabeças abanaram afirmativamente.

As reuniões do meu avô com quatro amigos, um dos quais seu irmão, meu tio-avô, um cego com grande vocação musical, eram nem mais nem menos (compreendi muito depois) do que reuniões de uma célula comunista. Tinham lugar ao fim da tarde, num dia certo da semana, julgo que às sextas-feiras. Obedeciam a um ritual que nunca compreendi: primeiro, o meu avô subia a um banco e desenroscava a extremidade de um varão de uma cortina. Do interior, retirava cuidadosamente um rolo de papel. Desdobrava o rolo que era uma bandeira vermelha, com a foice, o martelo e a estrela pintados a purpurina dourada. Afixavam a bandeira, prendendo-a a um quadro que estava na parede. Depois, o meu tio-avô, movendo-se como se visse, dirigia-se à grafonola, dava-lhe corda e punha um disco a girar. Era um hino em francês, que só depois vim a saber tratar-se de A Internacional. Enquanto o hino tocava, eles estavam de pé, com os punhos da mão direita erguidos e fechados. Eu, que me punha também de pé e cerrava o punho, estranhava que, quase sempre, quando o hino acabava, as lágrimas corressem pelas faces daqueles velhos operários da Fábrica dos Tabacos. A mim, a música até me parecia alegre...

Algumas vezes, o meu avô, nitidamente o controleiro do grupo, fazia as reuniões com os pés mergulhados numa tina de água quente misturada com sal. A minha mãe não podia assistir, trazia a água, trazia umas sandes, um jarro com vinho tinto e retirava-se. Aquilo era coisa só para homens. Eu ouvia, deslumbrado, a análise da situação política que eles iam desfiando. Num mapa da Europa, que desdobravam sobre a mesa, iam apontando os avanços do Exército Vermelho. Um dos amigos, o Caimão, era reformado dos Tabacos, mas tinha posses, abrira duas lojas de sapataria, uma perto do Royal Cine e a outra nas proximidades da Angelina Vidal, junto da tal Pastelaria Mimosa. Apesar de ser rico, andava sempre vestido de ganga. Lembro-me de, durante uma reunião, um dos elementos da célula ter colocado a hipótese académica de os aviões de Estaline bombardearem Lisboa, ele se levantar e gritar colericamente:

– Que venham! Não me importo de morrer, se for debaixo duma bomba soviética!

Os outros, assustados com aquela explosão de cólera e de fervor ideológico, pediram-lhe que não gritasse. Ao lado, morava um jornalista do Novidades, jornal oficiosamente católico e situacionista. Era uma gente maravilhosa, o jornalista, a mulher e a filha, uma rapariga adolescente, linda, que, quando não tinha aulas de manhã, tomava muitas vezes conta de mim, quando as nossas mães saíam de madrugada para as bichas. A Nita foi, a bem dizer, a minha primeira paixão. Paixão de um só sentido, devido aos dez anos que nos separavam como uma muralha de pedra. Porém, as paixões de um só sentido iriam ser a história da minha vida. Mas adiante. O meu avô também tinha boas relações com eles, mas, em todo o caso, havia que ser prudente. Apercebi-me depois que, para o Caimão, a humanidade se dividia em pessoas propriamente ditas (os comunistas e os compagnons de route, os bons), os trotskistas e os nazi-fascistas (ou seja, os maus). Morreu anos depois, não debaixo de uma bomba soviética, mas assassinado pelo filho à machadada. Ele que odiava o Trotsky, pois só o conhecia através das lentes estalinistas, teve um fim semelhante.

Quem morava também no prédio era um velhote muito simpático, um poeta. Soube depois que escrevia letras para fados. Conversava muito comigo quando me encontrava na escada. Falava-me de coisas sérias, como se eu fosse um adulto, o que me agradava, pois já estava farto de ser vítima da confusão que as pessoas crescidas geralmente faziam entre crianças e mentecaptos. Um dia, a minha mãe e a vizinha saíram para as bichas, mas a minha amada estava na escola, pelo que não podia tomar conta de mim. O poeta encarregou-se da tarefa. Tomei o pequeno-almoço em sua casa, conversámos, como era costume, e ouvi-o depois preparar um discurso que iria proferir nessa noite, de improviso, na Voz do Operário, de cuja direcção fazia parte. Pediu a minha opinião no final e levou em linha de conta algumas das observações que eu lhe fiz, sobretudo sobre palavras difíceis. «Se tu não as percebes, eles também não as vão entender», disse. Era calvo, com um rosto bondoso, usava óculos, suspensórios e bengala.

Na esquina defronte, na esquina de Sapadores com a Afonso Domingues, já na descida para o Bairro América, ao lado da padaria, havia uma leitaria que era a minha perdição – rebuçados, línguas-de-gato, chocolates com cromos coloridos colados sobre o papel de estanho – um mundo. E chicletes. Terão sido as pequenas caixinhas de cartão amarelo o meu primeiro contacto com a cultura americana.

Em suma, a Graça, a velha Almofala, com as suas vilas, com a sua rádio que iniciava as emissões com uma marcha militar do John Philip Sousa, com a sua procissão do Senhor dos Passos, foi a maravilhosa Samarcanda da minha infância!

Depois, subitamente, toda essa fascinante galáxia se desintegrou. O meu pai, promovido de terceiro a segundo-oficial, foi transferido para uma pequena cidade de província. A minha mãe e o meu pai andavam felicíssimos e excitados. Ouvia-os sussurrar durante a noite, fazendo projectos para o futuro. Na realidade, embora na altura me parecessem velhíssimos, ainda estavam ambos longe dos trinta anos. A minha mãe cantarolava todo o dia e, apertando-me contra o seu peito, dizia-me que tudo ia mudar. Pois. Era justamente dessa mudança que eu tinha medo. Durante todo o tempo que demoraram os preparativos para a viagem, julguei que, sem todas aquelas maravilhas do fascinante Bairro da Graça, a vida ia deixar de fazer sentido para mim. Uma sensação que, durante as décadas futuras, em circunstâncias diversas, me iria assaltar algumas vezes.

(Excerto de A Vida é um Desporto Violento)

4 comentários:

  1. Que belo conto,Carlos.Começaste cedo a ter muita sorte, a primeira vez que falei em casa de comunistas levei uma "surra" das antigas.O meu pai, coitado, cheio de medo, achou que era a melhor maneira de me defender do fascismo.E era.

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  2. Interessante e enternecedor texto, magistralmente bem escrito, fundindo de forma tão bonita a limpidez literária com a limpidez dos sentimentos. Um grande abraço, Carlos, também pelo facto de me lembrares o meu viver da guerra, cujo teatro foi bem diferente do teu, mas cuja táctica e estratégia de criança era a mesma.

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  3. Obrigado, amigos. Há uma outra liberdade ficcional - o conto não é cem por cento autobiográfico (embora, no essencial, o seja). O meu avõ, retratei-o com o rigor que a memória permitiu e a cena da célula é tão fiel quanto possível. O Caimão também corresponde a uma pessoa concreta (com outro nome) - era um pró-soviético fanático e morreu da forma trágica que refiro. O meu avô que, segundo julgo saber, era o controleiro da célula, tinhaa uma maneira mais dialogante de encarar o comunismo. Eu tinha ddezoito anos quando ele morreu e, coitado, teve de suportar as minhas críticas ao amrxismo feitas de uma perspectiva sartriana. Ele argumentava da forma estruturada que é normal no partido e eu contestava com desvairos existencialistas - nunca me falou em tom tolerante; desde os meus quatro ou cinco anos, sempre debateu comigo as coisas em tom sério. O meu avô Alberto era uma pessoa de espírito superior e de uma cultura enciclopédica (embora, operário fabril). Biblioteca impressionante para a época e para um operário.

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  4. Bolas, perdi tudo o que tinha escrito!
    Lindíssimo texto, Carlos, exactamente pelos mesmos motivos que o Adão apontou. Ainda por cima uma história passada numa zona em cuja proximidade, mais tarde, morei, a partir dos dez anos e,por isso, também, com muitas referências de infância e juventude (as vilas da Graça, por exemplo).

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