José Magalhães
O estrondo, enorme e contínuo, baralha as ideias, impede o pensamento e perturba o imperturbável caminhar das horas e dos dias.
As casas, os prédios e as pontes, caem como baralhos de cartas, lançando a destruição à sua volta. As estradas, as ruas e os caminhos, desaparecem, deixando no seu lugar, uma amálgama de trilhos sem sentido e sem indicação de rumo.
No meio de tanta desgraça, J sente-se perdido. Olha à sua volta e só a devastação e a ruína se encontram à vista. O desespero ameaça tomar conta das suas acções. As soluções não existem, os caminhos não se vêm, a solidão está presente.
Os familiares, mesmo que voltassem com os seus esforços e cheios de boa vontade, não apagariam a tristeza nem acalmariam a desesperança.
J é a imagem personificada do desânimo.
Ao seu lado, não tem companheiros de infortúnio. Ninguém repara no seu sofrimento, ou ao menos se importa. Cada um tem a sua própria dor. E as dores dos outros são sempre privadas.
A solidão que o assalta é avassaladora. Esse isolamento, nos momentos em que mais necessidade se tem de companhia e compreensão, sempre se impõe a tudo e a todos, mesmo quando, ou até apesar de gritarmos o nosso pesar aos quatro ventos.
A vida perde a razão de ser perante o descalabro eminente. A vontade de acabar com tudo cresce a cada minuto que passa. J está perdido.
J de Jaime, de Joaquim, de José … Podia ser eu, este J…. Podia ser eu! Chato, desconfiado, ora trabalhador, ora desleixado, quezilento, ausente, com filhos espalhados pelo mundo, e amores em cada esquina. Podia ser eu, este J.
Como isso me aflige. Uma vida de trabalho a governar e um final desgovernado. Sem ninguém, sem proventos, sem futuro. Uma vida negra, de um negrume intenso, fatal.
Soube do J há dias. Cinco filhos e outras tantas mulheres. Perdeu o emprego de chefia que tinha e adoeceu, não sei se por essa ordem. Recentemente o governo cortou-lhe o subsídio de doença. Foi considerado apto para um trabalho que não tem nem tem possibilidade de voltar a ter. Como foi gerente da firma que detinha, também não tem direito ao outro subsídio, o de desemprego. A sete anos de distância de uma reforma de miséria, as perspectivas não são brilhantes. Abandonaram-no, os que viveram dos seus impostos, os que viveram dos seus pagamentos de juros e os que dele sempre tinham dependido, a uma sorte que não procurou, a ele, que toda a vida tinha sido mimado por uns e outros. Essa mesma vida durante a qual tinha mimado os outros com a sua capacidade humana e económica. Filhos, mulheres, amigos de todo o género e espécie, todos, um a um, desapareceram da sua companhia como se ele transportasse peste. Dizem-me que pouco lhe falta para desistir, de tudo, de vez.
Podia ser eu, pensei de novo.
Olhei à minha volta. Livros, computadores, secretárias, cadeiras, fotografias. Estava lá tudo o que é costume estar no meu cantinho.
Aos livros já li quase todos, e a alguns até reli uma e outra vez. A outros, poucos, falta ler. Não tive pachorra na altura em que me chegaram às mãos e depois, nunca mais me lembrei deles. A não ser nestas alturas em que intimamente prometo fazê-lo logo que tenha um pouco de vagar. Tenho alguns desses há mais de um lustre, alguns mesmo há muito mais.
Os computadores, são dois. Um pequeno, portátil, que transporto comigo para todo o lado. É nele que escrevo o que me vem à cabeça. É nele que desabafo as alegrias e as mágoas. É nele que leio as palavras amigas que me mandam pelo novo correio, o electrónico. No outro, o grande, trabalho nas minhas fotografias, descubro os erros que têm e retoco-os, preparo as minhas exposições de imagens, escolhendo as que merecem ser vistas e escondendo as menos boas.
As secretárias e as cadeiras, também duas de cada, onde me sento para escrever em papel. À mão. Adoro escrever com caneta e ás vezes com lápis. Tenho uma letra miúda que por vezes nem eu entendo, mas gosto de escrever, de exercitar a mão, de deixar um testemunho físico da minha passagem por este mundo. Quando posso e o tempo dos dias de hoje me permitem, escrevo cartas, em vez de telefonar, de mandar mensagem via telemóvel ou de enviar escritos por correio electrónico. Sinto-me bem quando recebo uma carta escrita por alguém que me seja próximo, mas cada vez somos menos os que se dedicam a isso.
E as fotografias que me transportam para o passado, sempre presente. Fotografias dos filhos e dos pais e avós e tios e por aí fora. Alguns dos representados nas molduras, mal os conheci, mas lembro-me deles e faço por não deixar de o fazer. – Deve ser triste ficar eternamente esquecido numa moldura à espera do fundo de uma gaveta ou de um caixote cujo destino será, um dia, o lixo. – A outros que por ali estão, não conheci de todo, mas conheço-lhes as histórias e sei dos exemplos que deram e que insisto em tentar seguir.
Enquanto olho à minha volta vou pensando de novo que o J bem que poderia ser eu. Que raio… mas é que podia mesmo… podia sim!
Lembranças, certezas, dúvidas, tudo me assalta. E o J! Soube dele há poucos dias.
Como estará? Qual o valor da vida que ainda transporta, que esquinas dobrará ainda?
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
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