sábado, 18 de dezembro de 2010

A Marlowe entre espirros

Carla Romualdo


Confesso-vos esta fraqueza. Ao primeiro arrepio, quando se sente o corpo subitamente exausto e dolorido, no momento em que começamos a sentir-nos tomados pela auto-comiseração, eu afundo no sofá e deito mão a Chandler. Ou a Hammet, embora prefira o primeiro.

No isolamento da gripe gosto particularmente da companhia do detective Philip Marlowe. Solitário, endurecido pelo muito que viu mas não o suficiente para não se condoer da condição humana, Marlowe acompanha as minhas convalescenças com o seu sarcasmo. Quando me preparo para tomar o paracetamol, não me atrevo a esboçar uma expressão de sofrimento. Marlowe passa-me o comprimido e lança-me à cara, sem me dar tempo a gaguejar uma resposta:

- Escute, vou dar-lhe aquilo de que precisa. Não sou uma pessoa crédula, que acredite em qualquer história. De maneira que aceite o que lhe é oferecido e porte-se bem. Quero ver-me livre de si porque tenho um mau pressentimento.

Estremeço, tomo o comprimido sem pestanejar, sorvo mais um gole de chá e aconchego a mantinha. Na doença, ainda que banal como esta, encontro um inexplicável conforto nos cenários decadentes do policial negro. Mulheres fatais, homens destruídos pelo álcool, ricaças ninfómanas, corpos que aparecem a boiar numa piscina… este cocktail insólito funciona melhor do que qualquer panaceia de farmácia.

Se falta o livro, um filme pode fazer um efeito semelhante, embora com resultados mais lentos. O “film noir” dos anos quarenta e cinquenta, com os insuperáveis Bogart e Bacall, ajuda sempre, mas quando os sintomas da gripe se intensificam dificilmente consigo acompanhar um filme. Prefiro ler um livro num estado febril, ir caindo no interior de uma história meio lida e meio delirada, adormecer sobre as páginas e sonhar que, num bar esconso, não muito longe de Sunset Boulevard, à hora do crepúsculo, quando as sombras se adensam, sento-me ao lado de Marlowe e começo a ouvir a sua história.

- A primeira vez que vi Terry Lennox ele estava bebêdo, dentro de um Rolls-Royce Silver Wraith, à porta da esplanada do The Dancers…

Espirro, deliciada, encolho-me um pouco mais, aproximo a caixa dos lenços, e bendigo a sorte que me constipou.


Digam lá se não ficaram com saudades de um desses filmes negros, que há muito foram empurrados para fora da programação dos canais generalistas de televisão em Portugal?
Então espreitemos "The Maltese Falcon" (1941), de John Huston, adaptação do romance homónimo de Dashiell Hammett, que em Portugal se chamou "Relíquia Macabra".
É um só um pedacinho, o que vamos ver, mas tem todos os ingredientes: o duro, mas nem por isso desprovido de romantismo, detective Sam Spade (Bogart, claro, quem havia de ser?), a "femme fatale" Mary Astor, e o tortuoso Peter Lorre, para mim um dos maiores actores secundários que Hollywood conheceu. Dizem os entendidos que este filme inaugurou a categoria de "film noir".




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