segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Mata-Cães ou o criador e a criatura *

Carlos Loures


Em meados dos anos 80, entre as muitas coisas que fazia, tinha a meu cargo a leitura de originais de uma pequena editora – a Salamandra, do Bruno da Ponte e do Veiga Pereira. Como sempre acontece a quem tem essa responsabilidade, era obrigado a ler muitos textos sem qualquer interesse, sem qualidade e, portanto, sendo de gente desconhecida, sem qualquer viabilidade de edição. Fazia um pequeno relatório de leitura e depois os donos da editora tomavam as suas medidas.


Muito raramente, era surpreendido pelo aparecimento de textos que se distinguiam no meio desse amálgama de lixo produzido por infatigáveis escrevinhadores. Devo abrir um parêntesis para vos confessar que o ler grandes doses de má literatura, acaba por embotar a capacidade crítica. Começamos a ler um texto já com a ideia de que se vai ler mais uma pessegada. O pior é que quase sempre se acerta.



Por isso, quando me apareceu um original de um escritor de que nunca ouvira falar, um tal Fernando Correia da Silva, li as primeiras páginas com a má vontade aliada ao espírito de sacrifico com que sempre começava a ler um novo texto. A certa altura percebi que o «Mata-Cães», assim se chamava o romance, não se enquadrava na tipologia habitual. Voltei ao princípio e, surpreendi-me a dar gargalhadas com as saídas da personagem do Chico, por alcunha o «Mata-Cães» e com as alhadas em que ele se ia metendo, criando um ambiente caoticamente ordenado.


A respeito deste romance, disse António José Saraiva que Correia da Silva revelava ao leitor desprevenido «um mundo caótico», através de uma «escrita viril e desabrida». Leitor desprevenido, eu, pude verificar que o livro era muito pouco literário no sentido que o termo costuma assumir. O autor não parecia minimamente preocupado em seguir as regras do jogo em moda – malabarismos formais, viagens de circum-navegação em torno da palavra.


Voltando a António José Saraiva e à sua opinião sobre este livro, perguntava ele: «Que é isto? Um poema? Um conto picaresco? Uma recordação onírica? Um testemunho realista? Uma reflexão sobre a história recente? “O livro há-de ser”, como dizia o Bernardim - “do que vai escrito nele”. Só abrindo se poderá julgar o “Mata-Cães”, que não é decerto um tranquilizante».


Fiz um relatório muito favorável e o livro foi publicado em 1986. Depois desse, Fernando Correia da Silva já publicou em 1989, LORD CANIBAL, outro romance, novas aventuras do Mata-Cães. Em 1996, o romance QUERENÇA, o qual foi passado ao cinema em 2004, com realização de Edgar Feldman. Em 1998 publica MARESIA, novo romance. em 2000 Lançou o romance LIANOR.


Tive ocasião de conhecer o Correia da Silva e tornámo-nos amigos. O curioso é que a personalidade do Fernando se confunde com a do seu herói, o Chico «Mata-Cães», quando leio os romances é-me sempre fácil imaginar os protagonistas – identificam-se sempre com o autor. LORD CANIBAL, para aumentar a confusão, entre criador e criatura, é assinado por Francisco Mata-Cães, criando não um processo pessoano de heteronímia, mas o contrário desse desdobramento de personalidade – uma concentração semelhante à que existiu entre Alfred Jarry e o seu Ubu-Roi.


Fernando Correia da Silva, um nome que devia ser mais conhecido. Enchemos a cabeça com nomes de gente medíocre – políticos, futebolistas, actores de telenovela, o povo do jet set e das revistas «do coração» e, naturalmente, depois falta-nos espaço de memória para, por exemplo. sabermos quem é, o que escreve e como escreve o Fernando Correia da Silva.






(*Este texto, com ligeiras diferenças, foi publicado no blogue Aventar).

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