Natárias
(Cantos que precedem, na Beira Alta, as “Janeiras”)
Maria Cecília Correia (1919-1993)
Foi quando morreu Tia Aurélia, com cinco anos de idade, que meu avô levou para casa o Menino Jesus, na sua caminha de cortinados feitos com pequenas flores ligadas, parecendo ser de madrepérola, mas que, segundo nos ensinaram, eram de escamas de peixe. Lindos eram, com duas rosas nas cabeceiras e outra maior, em cima, como remate. O Avô quis fazer uma surpresa à Avó, um mimo que a distraísse do seu grande desgosto. Foi um santeiro afamado que fez esse lindo Menino Jesus, um santeiro nomeado e gabado num livro de Aquilino Ribeiro, o Sr. Nelas. Contei a história dessa oferta num conto do meu livro para crianças e esse conto foi depois aproveitado para texto escolar, o que muito me agrada: o Menino Jesus é conhecido de muitas crianças, não ficou somente cá em casa.
O Menino Jesus, não sei se meses seguidos, se todos os anos pelo Natal, era “requisitado” pelas freiras do “Sacré Coeur”, ainda mal instaladas em Viseu. Minha mãe contava que as mais… hoje dir-se-ia “ternurentas”, passeavam no recreio com a imagem nos braços, embalando-o como se criancinha fosse. Quanto de maternidade frustrada nesses asseios com o Deus menina da minha Avó Prazeres! Esta, tendo em vista o seu (dele) sorriso meigo, chama-o “meu feiticeirinho”. E ficou estabelecido, não sei por que lei, que ele passaria de filha mais velha para filha mais velha. Assim, eu fui a terceira a possui-lo e hoje Karin, a minha neta de 6 anos, já me soube dizer que o Menino Jesus um dia será seu.
Ouve, Karin, tu, que já me soubeste dizer isto, explica-me como se diz “meu feiticeirinho” na tua língua. Mas acho que, como tu também falas português, só o deves dizer nesta minha – tua – língua, como tua trisavó o dizia e sabendo porque ela assim o chamava. Tu, que não conheces que toda a crónica daquela família se dividiu em dois poisos – Rua Formosa e Massorim – tens de saber que a Rua Formosa foi o arraial vivido, onde tudo o que era importante se passou, e que Massorim foi o sonho construído, a casa que se fez, mas a velhice também, as divisões, a venda do sonho e a dispersão da família. Portanto tu, que nem podes ir ver a casa da Rua Formosa que uma urbanização desfez, terás só de saber que lá é que o Menino Jesus foi oferecido, depois amado, depois emprestado, depois ido para casa de meus Pais, em várias terras e ao sabor dos nossos percursos, mas sem o oratório que em casa nenhuma cabia e que ficou a desfazer-se num sótão de empréstimo, lá longe, ficando a imagem guardada dentro de uma caixinha de papelão e o berço cuidadosamente embrulhado em papeis que o não comprimissem, em prateleira apertada – percalços de 6 assoalhadas para outras tantas pessoas, saindo só pelo Natal, até que, em maré de mais espaços, numa casa já minha, se lhe fez um triangulozinho com paredes de vidro, obra do Sr. Almeida, o paciente marceneiro que fez tantos móveis que hoje aqui vês, trabalhando sozinho em oficina pacata. A tunicazinha é ainda a mesma que lhe conheci, com os seus arabescos bordados a ouro. Só não sei se já foi comprado com ela, era ainda menina a tua bisavó Cecília, ou se a bordaram depois as “Mères”. E, se lhe ponho uns tantos livros policiais escondidos debaixo do bercinho, a aguentarem-lhe as pernas já tortinhas, é porque eles são a exacta medida do berço-cama. Bem sei que eles estão escondidos pelo fio prateado da Árvores do Natal, batota que fiz, mas, com pouco mais de cuidado, eu teria arranjado outro calço qualquer. Deixo isso ao teu cuidado, está bem?
Que isto do calço, é coisa simples de remediar. O mais importante é que saibas “acender a luz”. Não é riscar o fósforo sobre a vela, como hoje poderás pensar. É entrares numa cadeia, sabendo que substituis os que acenderam anos e anos atrás. A avó da tua avó… não te será um abstracto irreal, absurdo até perante o relâmpago que é o viver de hoje? Mas são assim as gerações – as “linhas” em sequência. Diante do Menino, elas passaram e se detiveram atentas, numa época que os adultos chamavam Advento e as crianças somente Natal, entre velas, lamparinas, novenas e também expectativa de novidades sempre renovadas; de Festa.
Na vela tu me verás mais tarde, como eu hoje os vejo a eles, a um a um, sabendo seus nomes por tradição oral, coisa que hoje também já não se usa. Mas, ainda que tu não saibas seus nomes, como eu, eles aí estarão contigo, nessa luz que iluminará o Menino, por tuas mãos acesa, luz que sempre significou amor e continuidade.
O Natal é uma corrente de afectos entre gerações. Bonito o conto.
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