quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O meu amigo Romeu Correia



Carlos Loures

A revista “Nova Síntese” (Edições Colibri), publicou no seu número 4, dedicado ao tema “O rural e o urbano no neo-realismo”, um texto do Professor Alexandre Castanheira, com o título “Romeu Correia, um neo-realista esquecido”. O texto começa com uma citação do crítico literário João Gaspar Simões que, no jornal Sol de 21 de Maio de 1949, dizia sobre “Trapo Azul”, o romance de estreia de Romeu Correia: «Um jovem cheio de talento que insuflou ao “neo-realismo” decrépito uma vida que o “neo-realismo” nunca tivera entre nós».


Não vou referir-me hoje ao magnífico texto de Alexandre Castanheira, nem dissecar esta precipitada notícia necrológica de Gaspar Simões, crítico inteligente, mas controverso, que considerava decrépito um movimento que ainda mal ensaiara os primeiros passos. Basta consultar as datas de publicação de grandes obras de Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, para verificar que as grandes obras do neo-realismo não tinham ainda sido publicadas em 1949. Mas o texto incentivou-me a escrever hoje sobre Romeu Correia.



Conheci-o pessoalmente pelo final dos anos 50, acabara de publicar a sua peça “Sol na Floresta”. Travámos uma amizade duradoura, embora nunca nos tratássemos por tu (era quase da idade do meu pai). A verdade é que eu o «conhecia» já há uns bons dez anos. Quando em 1948 saiu o seu livro “Trapo Azul”, um vizinho, morador na Baixa, mas nascido em Almada, em conversa com os meus pais, a que eu assistia (mas com dez anos não podia intervir na conversa dos adultos) disse que tinha saído um livro cheio de calúnias para com as gentes daquela vila, hoje cidade.


Era uma coisa tão miserável que, dizia ele, pela primeira vez na vida tinha rasgado um livro, deitando-o fora a seguir. Como quem não quer a coisa, eu perguntei o nome do livro e quem era o autor. Os meus pais olharam para mim com ar apreensivo. O meu vizinho dignou-se responder-me: «”Trapo Azul”, de um tal Romeu Correia». Isto foi a um serão em nossa casas e no dia seguinte convenci a minha mãe, que também ficara curiosa, a irmos comprar o livro. Foi na Férin, salvo erro, que o encontrámos. E lá o trouxemos para casa. A minha mãe lia-o primeiro e, depois, logo se via se eu o podia ou não ler. Aceitei o acordo.


Ela leu o livro duma assentada e de manhã deu o veredicto. Era um bom romance, mas não era próprio para mim. Claro que mais não foi preciso para que uma grande curiosidade me assaltasse. Manhoso, fingi-me completamente desinteressado e fui observando que a vigilância ao volume ia sendo cada vez mais descuidada, deixou de estar fechado à chave numa gaveta e semanas depois já ninguém se lembrava daquele perigo para a minha educação.


Quando sabia que ia estar uma hora ou mais sozinho ia lendo, memorizando a página em que interrompia a leitura e deixando-o tal e qual na posição em que o encontrara dentro da gaveta. E assim o consegui ler em relativamente pouco tempo. Esse exemplar não o encontrei entre os livros de minha mãe e o que tenho foi-me oferecido pelo autor ao qual contei as minhas aventuras para ler o seu livro.


Mas voltando a esse primeiro encontro com Romeu Correia, foi (se a memória não me falha) no segundo piso do Café Avis, nos Restauradores do lado do Eden, Era um café estranho – no primeiro piso era frequentado por gente de extrema-direita, legionários, inclusive, ali levados pela grande cruz de Avis em néon que brilhava sobre a porta principal. No piso superior, era para a malta de esquerda. Disseram-me ser ali que o Amílcar Cabral dava explicações de Matemática.


Parava também por aquele segundo piso um grupo heterogéneo onde se incluía o Renato Ribeiro e sua mulher, a Fernanda Barreira, o Manuel de Castro, o Manuel de Seabra, o Romeu Correia que trouxe um dia a Maria Rosa Colaço, e este vosso amigo. O estranho é que os legionários nos viam passar e se faziam comentários era em voz baixa. Nunca houve ali provocações. Um dia hei-de escrever um texto sobre «os meus cafés». Muitos.


Os cafés do Romeu Correia eram outros. Ao Avis só ia para se encontrar comigo, com a Maria Rosa, com o Renato… À noite vinha de Almada no barco e parava na Coimbra, da Alexandre Herculano num grupo de que o Namora e o Bernardo Santareno faziam parte (uma vez que fui lá para o encontrar, eles estavam lá) e, à hora do almoço podíamo-lo, sempre sozinho, encontrar no café Bom (trabalhava na sede do Banco Ultramarino, na Rua do Ouro). O Café Bom ficava na Rua da Betesga em frente à cervejaria Mó, que ainda existe. Ali estava ele, preenchendo com a sua letra grande e irregular folhas soltas de páginas brancas. Era mais um romance em gestação.


Romeu Correia falava de uma forma apaixonada, revivendo as suas histórias e emocionando-se com as recordações. Não raro, fechava os olhos para que a memória lhe fosse mais fiel. Numa noite de Verão, creio que em 1959, numa esplanada da Avenida descreveu-me a Amália gravando «O Céu da Minha Rua», tema musical da série que a RTP produziu a partir do seu romance homónimo. Não saiu bem durante uma série de tentativas e quando o realizador queria desistir, às quatro ou cinco da manhã, Amália fez uma última tentativa, rasgando as meias com as unhas enquanto cantava. E saiu bem. «Uma mulher muito inteligente e cheia de raça», concluiu.

Romeu e Almerinda Correia

Noutra das suas descrições, esta feita no Avis, contou-me como, ainda no início da sua carreira no BNU, fora cobrador. Por vezes ia almoçar a casa, a Almada, se tinha alguma cobrança na margem esquerda. Naquele dia após uma cobrança de uma avultada importância, chegou a casa e encontrou Almerinda, sua mulher, profundamente adormecida. Jovem e bonita, era atleta de alta competição, descansava de horas de treino e de trabalhos domésticos. Resolveu fazer uma brincadeira poética, uma homenagem – cobri-la de ouro . colocou-lhe sobre o corpo notas de mil escudos, centenas delas. E depois acordou-a.


A surpresa de Almerinda, a sua expressão ao ver o dinheiro foi uma coisa linda, disse ele. Eram pobres e ela nunca vira tanto dinheiro na vida. Mas depressa percebeu o que se passava e disse-lhe «arruma lá toda esta porcaria!» e ajudou-o a recolocar as cintas nos maços e a metê-los na mala.


Outra recordação que o fazia vibrar era a do seu trabalho como artista de circo. Boxeur amador, com campeonatos ganhos, fazia um número em que com a ajuda de um projector, num jogo de luz e sombra, lutava consigo próprio.


Já nos anos 70, quando voltei a Lisboa, reatei a amizade que fora mantida com uma outra carta e no convívio durante as férias de Verão. Romeu e Almerinda passavam quinze dias todos os anos na Colónia de Férias da FNAT e, em Agosto, eu estava por ali perto, em Santo António ou, posteriormente, em São João da Caparica com a minha mulher e os dois filhos. Encontrávamo-nos sobretudo no cinema da colónia, pois éramos todos apaixonados por cinema.


A última vez que estive com ele foi no lançamento de um livro da Maria Rosa, no forum municipal de Almada que hoje se chama Forum Romeu Correia. Foi pouco tempo antes de ter falecido, notava-se já que estava doente, mas tendo ficado ao meu lado enquanto o livro da nossa amiga era apresentado, falou-me com entusiasmo de uma História da Incrível Almadense que andava a preparar.


Um bom escritor e um grande amigo. Um homem cuja vida daria um romance. Aqui fica uma resenha biográfica.


Romeu Correia, (17 de Novembro de 1917- 12 de junho de 1996) nasceu e faleceu em Almada. Escritor, ficcionista e dramaturgo, foi colaborador de diversos jornais e revistas, nomeadamente da Vértice. Em Outubro de 1942, casou com Almerinda Correia, que viria a ser campeã nacional de atletismo. O próprio Romeu Correia foi atleta de alta competição e campeão nacional de boxe amador. A sua obra está traduzida em numerosas línguas e tem sido objecto de teses académicas, em universidades portuguesas e estrangeiras.


Recebeu, em 1962 e 1975, o prémio Casa da Imprensa; em 1984, o Prémio de Teatro 25 de Abril, da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro; e, pela peça O Vagabundo das Mãos de Oiro (1962), o Prémio da Crítica. Em 1958, a sua peça Céu da Minha Rua foi transmitida em directo pela RTP com Amália Rodrigues no papel principal.


Escreveu: Sábado sem Sol (contos, 1947), Trapo Azul (romance, 1948); Calamento (romance, 1950); Gandaia (romance, 1952); Casaco de Fogo (teatro, 1953); Desporto-Rei (romance, 1955); Céu da Minha Rua (Isaura) (teatro, 1955); Laurinda (teatro, 1956) Sol na Floresta (teatro, 1957); O Vagabundo das Mãos de Oiro (teatro, 1960); Bonecos de Luz (romance, 1961); Bocage (teatro, 1965); Jangada (teatro,1966); Amor de Perdição (teatro, 1966) 3 Peças de Romeu Correia: Laurinda, Sol na Floresta e Céu da minha rua (teatro, 1968); O Cravo Espanhol (1970); Roberta (1971); Francisco Stromp (biografia, 1973); José Bento Pessoa (biografia, 1974); Um Passo em Frente (contos, 1976), Os Tanoeiros (nova versão de Gandaia)(romance, 1976); Homens e Mulheres Vinculados às Terras de Almada - nas artes nas letras e nas ciências (história, 1978); As Quatro Estações (teatro, 1981) Jorge Vieira e o Futebol do seu tempo (biografia, 1981) Tempos Difíceis (teatro, 1982); O Tritão (romance, 1982),; Grito no Outono (teatro, 1982); O Andarilho das 7 Partidas (teatro, 1983); O 23 de Julho (narrativa, 1986) Portugueses na V Olimpíada (ensaio, 1988); Cais do Ginjal (novela, 1989); Palmatória (1995)







(Este texto, com ligeiras diferenças, foi publicado antes no blogue Aventar)

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