sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Os dez mais: Há quanto tempo a não via

Manuela Degerine




As rádios e televisões francesas não falam de outra coisa: chegou a neve. Dezasseis graus negativos em Orleães, aldeias sem electricidade, a circulação interrompida, os camionistas encalhados, náufragos da neve, na metáfora radiofónica, alguns voos e Eurostar suprimidos, cidades com transportes paralisados, múltiplas estratégias de substituição – uma das quais é circular de bicicleta. Os pneus para a neve esgotados, as botas para a neve vendidas. As crianças radiantes por não haver escola. As crianças felizes por brincarem na neve. Os grandes debates: o sal nas estradas, a arquitectura ecológica, o pico do consumo de energia temido, atingido e, por fim, não ultrapassado graças ao civismo dos habitantes da Bretanha que apagaram as luzes inúteis, adiaram as lavagens de roupa e desceram dois graus no aquecimento das casas. Uf... A descoberta, nas aldeias sem electricidade, de outro modo de vida: a botija de água quente, a conversa junto da lareira, o deitar às nove da noite... Como no tempo dos nossos avós. As entrevistas nas Galeries Lafayette, permanecer elegante no frio, não às fibras termolactil, sim às camisolas de cachemira... O abrigo dos sem-abrigo.


Assisto a tudo com uma estranheza crescente, não só porque passei o ano em Lisboa, onde o calor me sinistrou durante três meses, mas também porque em Paris francamente... As temperaturas diurnas andam à volta dos zero graus o que, com meias e luvas de lã, duas camisolas e um blusão de penas, se vive muito agradavelmente. Tenho caminhado por ruas e parques sem me sentir refrigerada. Diversas vezes, durante percursos de bicicleta, caíam farrapos de neve; achei muito bonito. As casas, os transportes, todos os edifícios públicos e privados são aquecidos – excessivamente. Demasiado branca e pura para se tornar banal, não podemos contudo dizer que seja aqui novidade; no entanto quem vê o telejornal fica com a impressão de, na história climática da França, ter agora caído neve pela primeira vez. Parece que estamos no Rio de Janeiro.


Ou em Lisboa. Ontem, saturada de branco, rumo à RTPi... Portugal é verde no Inverno. E qual não é o meu espanto? O país estava todo virado para a Serra da Estrela. Mais neve, mais estradas interrompidas, mais autocarros imobilizados. Mais blablá refrigerado. Na verdade... Em Portugal ainda compreendo: pouco frequente na maior parte do território, constitui uma informação, entre o pavor – carros virados – e o estético e o lúdico. As imagens são de facto bonitas e, para a maioria dos portugueses, evocam viagens à montanha, a dos dois mil menos sete, a única, a da Estrela; no mínimo: a descoberta do sku durante uma viagem escolar. Lembro-me que, na primeira vez, teria uns cinco anos, provei a neve: na minha imaginação a Serra de Estrela era o cume dos gelados de coco. Achei um tanto insípido. Comecei a compreender que as estrelas cobertas com gelado são reais na imaginação. Já não é pouco. A realidade da neve? Essa conhecem-na os habitantes das serras, esta e outras, no Centro e no Norte do país pois, no mínimo, desde o tempo dos Montes Hermínios, mais ano, menos ano, se confrontam com o frio e as escorregadelas. Por estranho que pareça a alguns, muito antes de as reportagens os descobrirem a eles, já os habitantes das serras conheciam a neve e sabiam o que fazer quando ela cai; até sabiam, como na Serra da Lousã, tirar proveito económico da neve que, desde o século XVIII, era recolhida perto do Coentral e encaminhada para Lisboa por conta de Julião Pereira de Castro – para fazer gelados.


Interrogo-me há uma semana sobre o papel desta glaciação mediática, deste carnaval branco, deste furor invernal, esquecidos a crise, o terrorismo, o Irão e o tráfico de droga. (Já nem falo do desemprego.) Trata-se de informar, de variar, de divertir, de preencher um vazio, de instalar um ambiente pré-natalício? Jingle bells?... Sem dúvida um pouco disto tudo.


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