Fernando Pereira Marques
Não se pode reformar o ensino superior separadamente da resolução das fragilidades fundamentais das bases do sistema educativo, como a do abandono escolar que, entre 2001 e 2007, só terá sido reduzido em três pontos percentuais.
Concretizando, em 2006 39,2% dos jovens até aos 24 anos abandonaram a escola antes de terem concluído o equivalente ao 9.o ano (39,4% em 2004, 38,6% em 2005), destes 46,4% (47,9% em 2004, 46,7% em 2005) são rapazes, o que corresponde a 15 pontos acima de igual indicador para as raparigas (31,8%-30,6% em 2004, 30,1 em 2005). Na UE (dos 27 países) tais valores são, respectivamente:
16,1% (18,5% e 13,7%), 15,6% (17,6% e 13,6%), 15,4% (17,5% e 13,2%)(7) . De acordo com declarações da ministra da Educação em exercício no momento em que escrevo, cerca de 45 000 alunos do 7.o e 10.o anos abandonam a escola no período, considerado crítico, das férias da Páscoa (8). Por outro lado, Portugal é o segundo país da OCDE (o México é o primeiro) com menor percentagem de adultos entre os 25 e os 64 anos que concluíram o secundário (12.o ano), o que corresponde a 26% em relação a uma média de 68% dos 34 países analisados; mesmo a Espanha já atingiu os 49% (9).
Indissociável do abandono surge o fenómeno do insucesso. Com a introdução de exames nacionais no 9.o ano, tal facto ganhou particular visibilidade em especial no que concerne à Matemática: no ano lectivo 2006-2007, em 96 829 alunos houve 70 492 reprovações, isto é, três em cada quatro obtiveram menos de 2,5 valores (72,8%). Menos dramáticos foram os resultados registados na prova de Português, o que os professores da disciplina, no entanto, explicam pelo baixo grau de exigência da mesma: em 96 941 alunos obtiveram médias iguais ou superiores a 2,4, 83 757 alunos (86,4%) (10). O estabelecimento de um ranking das escolas a partir dos resultados obtidos a nível nacional, mostra, se dúvidas houvesse, os reflexos das desigualdades sociais persistentes entre alunos das escolas privadas e públicas, entre o litoral e o interior, e entre jovens de bairros problemáticos e outros económica e socialmente
mais favorecidos: de todos os estabelecimentos de ensino, só 14% obtiveram uma média igual ou superior a 3, o que corresponde a 186 em 1297 escolas, sendo de 2,3% (30) os bons e muito bons(11) ; os 74% que conseguiram média positiva foi graças aos arredondamentos.
Segundo a OCDE, observam-se os seguintes dados globais comparativos em relação ao seguinte grupo de países(12):
Taxa de conclusão do ensino secundário por grupo etário
NASCIDOS NASCIDOS
PAÍSES DECADA 40 DECADA 70
Coreia 32% 97%
Noruega 76% 95%
Japão 65% 94%
Eslováquia 70% 94%
Portugal 10% 37%
Taxa de conclusão do ensino superior por grupo etário
NASCIDOS NASCIDOS
PAÍSES DÉCADA 40 DÉCADA 70
Coreia 10% 47%
Noruega 22% 40%
Japão 19% 52%
Eslováquia 9% 13%
Portugal 6% 16%
Se considerarmos, ainda, baseados na mesma fonte, que em Portugal não atingem 10% os empregados que participam em actividades de formação, face a 40% em países como a Dinamarca, Finlândia, Suécia, Suíça e EUA, compreende-se, facilmente, a amplitude de rendimentos em função das habilitações, assim como o facto de Portugal, de acordo com a OIT, numa lista de vinte e nove países (os vinte e sete membros da UE mais o Japão e os Estados Unidos), ocupar o vigésimo primeiro lugar em produtividade. Uma das mais baixas da Europa (29 115 dólares anualmente, cerca de 17,22 por hora), menos de metade da riqueza produzida pelos norte-americanos, e só superior à da Letónia, Eslováquia, Lituânia, Hungria, Polónia, República Checa, Bulgária e Roménia(13) .
Seria estultícia, na economia deste ensaio, procurar esgotar ou mesmo aprofundar a reflexão sobre as causas deste estado de coisas. Sabe-se, aliás, que o desajustamento entre os sistemas de ensino e as realidades das sociedades contemporâneas, nos seus diversos aspectos, não é uma originalidade portuguesa. Todavia, para além do peso do passado e do atraso herdado, necessário é procurar o impacte de outros factores com incidências negativas quanto aos resultados globalmente obtidos, mas, muito particularmente, quanto aos aspectos qualitativos desses mesmos resultados. Vários se poderão aventar, como a instabilidade nas políticas prosseguidas pelos sucessivos governos, expressa nos planos legislativo (por exemplo, já são três as Leis de Bases do Sistema Educativo, a 46/86 de 14/10, a 115/97 de 19/9, a 49/05 de 30/8), curricular e noutras matérias. De referir também o problema das carreiras dos professores que, para além dos aspectos remuneratórios, se têm deparado com graves situações de insegurança na colocação e progressão, além de sofrerem uma degradação acentuada da sua imagem social e profissional. Depois sublinhem-se, não obstante o significativo aumento das dotações destinadas aos vários níveis do ensino
no cômputo geral das despesas do Estado, os constrangimentos orçamentais com reflexos no funcionamento do sistema, considerando tanto os aspectos materiais (instalações e equipamentos — realce-se o importante crescimento da rede de bibliotecas escolares) como os humanos. Acrescerá a tudo isto, experimentalismos irrealistas no que tange aos métodos e concepções pedagógicas, à relação disciplinar entre discentes e docentes — tendente a desresponsabilizar e a infantilizar os alunos (designados como «meninos» mesmo quando jovens adolescentes) —, assim como aos curricula.
Por tudo isto, é de acompanhar com expectativa a aplicação no ensino superior nacional do modelo delineado na Declaração de Bolonha. Não só pela razão já referida atrás — o insuficiente entrosamento no sistema globalmente considerado —,como porque alguns dos chamados «paradigmas» enunciados no preâmbulo ao Decreto-Lei n.o 42/2005, de 22 de Fevereiro, são susceptíveis de permitir interpretações ditadas meramente por critérios de gestão orçamental e estatísticos, enfraquecendo ainda mais — pois a situação em termos globais e comparativos internacionalmente é já precária — um ensino que precisa de apostar na qualidade, na exigência e no rigor.
Neste sentido, a possibilidade legal recentemente introduzida de adultos maiores de 23 anos, com um currículo no plano profissional e um percurso pessoal devidamente ponderado, se poderem inscrever no ensino superior sem necessidade de outro tipo de avaliação, positiva em si mesma numa óptica de alargamento das oportunidades de qualificação, corre o risco de ser desvirtuada, devido a razões economicistas, pelos estabelecimentos politécnicos e universitários, tanto públicos como privados. Conduzindo a um nivelamento por baixo, pode gerar novas formas de iliteracia, ou criar falsas expectativas junto de quem não possui as bases elementares para aceder a uma formação superior.
No plano da filosofia geral, como nos tais «paradigmas», insiste-se na ideia da «atractividade» do ensino («tornar o ensino superior mais atractivo») e, ao mesmo tempo, na «maior capacidade competitiva no mercado europeu». Reflecte-se aqui, simultânea, implícita e até contraditoriamente, a discutível ideia de que, no processo de aprendizagem, o prazer, a dimensão lúdica, deve sobrepor-se ao esforço, ao trabalho que essa aprendizagem inevitavelmente implica, ao mesmo tempo que se pretende moldá-la a objectivos imediatistas de competição no «mercado europeu.»
Neste contexto se inscreve aquele bizarro dualismo que, alimentado por certas teorias, se instalaria, a pretexto dessa Declaração, entre «um sistema de ensino baseado na ideia de transmissão de conhecimentos» e um «sistema baseado no desenvolvimento de competências» (v. Preâmbulo ao Decreto-Lei 74/2006, de 24 de Março). Como é possível desenvolver competências sem que haja quem transmita, por um lado, e quem assimile, por outro, conhecimentos?
Esta visão das coisas, latente ou explícita, explica a progressiva secundarização, logo na formação básica e secundária, de saberes considerados abstractos e genéricos, como
a Filosofia e a História, e o estatuto ambíguo atribuído à Matemática e ao Português,
privilegiando o que se pretende seja a obtenção de competências linearmente direccionadas
para a sua aplicação em actividades técnico-económicas-ocupacionais. Ou seja, com a justificação de até se estar a democratizar o que antes eram instrumentos de selecção das elites e de reprodução classista, acaba por se introduzir outras formas de exclusão e de estratificação, secundarizando na prática a fundamental componente humanista do ensino, em nome do pragmatismo e da rendibilidade dos indivíduos enquanto produtores. Um autor exprime o que acabo de dizer na seguinte passagem:
«A única preocupação é a da aprendizagem aplicada. Ainda o aluno não percebeu a
fórmula da proporcionalidade directa e já gostariam que se lhe perguntasse ‘será que os
impostos proporcionais são justos?’. O pobre estudante não percebeu ainda a semelhança
entre o exemplo da compra de batatas e o da distância percorrida pelo automóvel e já
gostariam de lhe pedir um ensaio escrito sobre as suas ‘experiências matemáticas significativas’(14).
«Como se fosse esta a via para, mesmo no caso concreto do nosso país, suprir o importante desfasamento, atrás aludido, entre a escassez de portugueses qualificados nas áreas técnico-científicas e o excesso de oferta nas demais áreas.
Finalmente, o enorme fosso a superar no domínio da I & D (investigação e desenvolvimento), incluindo no que se refere às empresas, o insuficiente número de mestres e doutores — em relação às médias europeias —, e as outras realidades comentadas, completam este panorama do atraso nacional.
Portugal é um dos países europeus que menos investe em «capital» humano (euros por pessoa): Suécia 175 530; Dinamarca 173 297; Áustria 153 277; Bélgica 147 489; Alemanha 146 902; Países Baixos 144 601; Finlândia 138 857; França 135 283; Reino Unido 122 908; Itália 107 678; Espanha 78 197; Irlanda 77 815; Portugal 69 560(15). Como vimos, não é de hoje tal situação, mas para a superar decisivamente, ainda por cima se os recursos são escassos — só deixarão de o ser, relativamente que seja, quando, entre outros, o factor da qualificação dos portugueses for superado —, repita-se, há que gerir rigorosamente esses recursos, não ceder à tentação política do exibicionismo estatístico, dignificar e estabilizar a carreira docente, racionalizar e fixar os conteúdos curriculares, fugir dos experimentalismos
pedagógicos. Em resumo, recusar o facilitismo e o voluntarismo, praticando a exigência
e buscando a excelência.
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(7) -Fonte: Observatório do Emprego e Formação Profissional.
(8) -V. TAVARES, Pedro Sousa — «Perto de 45 mil Alunos do 7.o e 10.o Anos Abandonam a Escola nas Férias da Páscoa», Diário de Notícias, 8-3-2007,
(9) p. 23. Declarações da ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues.
(10) Fonte: Panorama da Educação de 2007, OCDE.
(11)De acordo com o relatório anteriormente citado, Portugal é também o segundo país da OCDE que menos tempo dedica à Matemática e à aprendizagem da língua materna no currículo do 2.o ciclo do ensino básico.
(12) Cf. Ensino Superior/Jornal da FENPROF, n.o 207, Fevereiro 2006, p. 22.
(13) Cf. Ensino Superior/Jornal da FENPROF, n.o 207, Fevereiro 2006, p. 22.
(14) Fonte: OIT, 2006.
(!5) Cf. CRATO, Nuno — O ‘Eduquês’ em Discurso Directo. Lisboa: Gradiva, 2006, p. 95. Ressalve-se neste autor, na linha de outros que recentemente se têm pronunciado sobre estes temas, o anacrónico ajuste de contas com o pobre Rousseau que tem costas largas.
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*Este texto é retirado da obra de Fernando Pereira Marques Sobre as causas do atraso nacional, editado por Coisas de Ler em Dezembro de 2010. Ao Autor e á Editora apresentamos os nossos melhores agradecimentos pela autorização concedida para publicação deste excerto.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
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