sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Semana do Ensino: Retrato ¾ de um jovem professor de filosofia na “Cidade Maravilhosa”

Sílvio Castro
Tudo começa concretamente antes do início verdadeiro. E começa em ritmo de valsa, no grande baile de gala no Clube Municipal pela turma de bachareis da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Distrito Federal do ano 1954. Impecável, mas quase tonto, no meu magnífico smoking danço em viravoltas com Nadyr, muito bela no seu vestido longo. Tenho grande receio de pisar na grande roda do vestido de gala de Nadyr, o que fatalmente acontece depois da meia-noite e de tantos rodopios.

O jovem professor de filosofia começa realmente a existir em 1955, ano da licenciatura definitiva. Seguindo o ritmo sempre vertiginoso da Rio de Janeiro daqueles dias de geral agitação nacional, num tempo herdeiro da contestação política consequente do dramático episódio do suicídio do Presidente Getúlio Vargas aos 24 de agosto de 1954, entro no ensino sob o signo das exceções, em todos os sentidos. Não sei ainda que professor sou e que professor poderei chegar a ser, mas me confronto imediatamente com o difícil mercado de trabalho em que se embate todos os jovens docentes de todos os tempos, em particular para aqueles de então. Ensinar filosofia é partir em inferioridade de oportunidades diante da maioria das outras matérias, porque as suas horas oficiais são do grupo das matérias limitadas. Felizmente a licenciatura de Filosofia permite igualmente o magistério de História. Daquela Geral, mas com privilégio para a História do Brasil. Mas não terminam aí as exceções. Acrecente-se às poucas horas disponíveis oficialmente no programa do ensino o fato de viver o Brasil num regime predominantemente de escolas particulares para o ensino secundário. Este mesmo regime, ao contrário daquelas estatais, permite às escolas o pagamento do docente a forfait, por horas de lições dadas, sem obrigação de um claro contrato mensal de trabalho estável. Desta maneira, os desníveis de pagamento são inevitáveis, tocando principalmente os interesses dos docentes mais jovens e iniciantes. Este sistema de horários cria um grande problema para os professores, aquele da passagem de Colégios a Colégios numa grande cidade como o Rio de Janeiro. O que comportava e comporta uma perda de duas, três horas de locomoção diária, por seis dias na semana. Isto naturalmente para aqueles professores que têm a sorte surpreendente de poder trabalhar em muitas sedes. Este mesmo sistema das escolas particulares faz aparecer outro grande problema, aquele relacionado com os horários das mesmas. Em choque com as conquistas sindicais, essas escolas funcionam em vários turnos, começando às 8 da manhã e concluindo às 23 horas.

A única alternativa a este sistema predominante são as escolas públicas. Mas para chegar até elas precisa-se esperar a abertura de concursos especiais.

Naturalmente, eu, professor imberbe de filosofia, mas igualmente feliz pela possibilidade de ensinar também história, pouco posso sonhar neste inicial 1955 com um concurso para a escola pública. Devo lutar pelos poucos lugares que se me oferecem naquelas particulares. Em verdade, logo enfrento o sonho e me inscrevo num concurso para uma cátedra de História Geral e do Brasil das escolas secundários do Distrito Federal. Sabia que me tocava partir com poucas chances diantes das dezenas e dezenas de candidatos, em geral professores de grandes experiências e, de consequência, ricos de títulos, uma das partes do concurso, além daquela dos exames propriamente ditos. Eu partia com o mínimo de pontos, podendo apresentar somente os meus atestados de bacharel e licenciado em Filosofia. Depois, para compensar tantos desfalques da idade, me entrego por meses a uma estudo de história sem fim. Para isso frenquentavo por mais de 6 horas por dia a esplêndida biblioteca do Gabinete Português de Leitura, criado pela colônia portuguesa do Rio, no qual me deixava levar pelos sonhos diários diante de suas monumentais estantes cobertas de milhares e milhares de livros, estantes que cobriam um espaço largo e de grande altura. Ali era tudo um solene silêncio, sublinhado pelos sussuros dos passos cautos dos leitores em procura de suas mesas e no subi dos mesmos leitores por mais de 15 metros nos diversos andares das magníficas estantes, na busca dos livros mais longínquos. Surpreendentemente o concurso termina com a aprovação de 10 professores, entre os quais me encontrava também eu, colocado no quinto lugarr. Começa o tempo da nomeação, na espera que essa se verificasse antes da decadência dos direitos legais dos aprovados, direitos limitados em dois anos. Inlcialmente são chamados os três primeiros colocados. Depois, mais nada.

Tudo isso acontece num Rio de Janeiro fervente desde a morte de Getúlio, episódio que levantou a revolta geral da opinião brasileira nos mais diversos setores da vida do País, principalmente entre os estudante universitários que então vivem uma experiência que a Europa iria conhecer somente um decênio mais tarde, com o Movimento de 1968. Porém aquele brasileiro se distinguia fortemente do futuro movimento dos estudantes europeus, pois ele era marcante e quase exclusivamente uma rebelião política.

A “Cidade Maravilhosa”, além do seu natural e quotidiano ritmo de vida

expressiva, agora convive igualmente com este acentuado clima de contestação política. Esta é tão forte que então ninguém consegue ver claramente o que poderá acontecer com a eleição presidencial de 1956.

Para mim, que devo iniciar minha carreira de ensino, o começo de 1955 se apresenta difícil; difícil encontrar um lugar amplo de trabalho; difícil estabelecer-me com alguma certeza em um determinado posto. Foi então que, de repente, surgiu o primeiro desses postos. Mas, para confirmar as muitas situações de exceção em que me encontrava no início de uma carreira ainda desconhecida, recebo o convite para ensinar Filosofia para as turmas de 2º. e 3º. Anos do 2º. Grau do Colégio Feminino La-Fayette. No início do ano-letivo de 1955, numa manhã radiosa de luz de fevereiro, entro compassadamente na minha primeira sala de aula. Aberta a porta da sala e nela penetrando, caminho por entre duas fileiras de moças, estudantes do 3º. Ano. De pé, recebendo respeitosamente o professor de Filosofia estão trinta belas e surpresas faces que não acreditam no que os seus olhos vêem: um professor de filosofia com pouco mais anos do que os dezessete, dezoito delas. Consciente do que está sucedendo, completo o meu longo caminhar entre as duas fileiras de belezas, chego à minha cátedra, me acomodo e convido a todas elas de sentarem-se. Começa a lição de Filosofia. Aquela que preanuncia todo um ano de trabalho para o indefeso professor que neste momento se vê devorado por trinta olhares ávidos.

Começa então a minha aprendizagem e verdadeira tomada de consciência da condição de docente. Como num estado de suspensão continuada essas lições me ensinam mais do que todo o meu curso universitário me conseguira ensinar. Sei, e a cada lição, que me estou renovando e amadurecendo diante daquelas surpreendidas alunas do La-Fayette, que entre elas lutam calorosamente para ver qual a que teria a campacidade de seduzir-me no menor tempo possível. Um dia, quando o meu curso já atingira dois-terços de suas previsões quanto a matéria a ser comunicada, matéria que eu procurava equilibrar entre as noções de História da Filosofia e incurções no âmbito da Psicologia do Comportamento, uma manhã depois de uma exercitação sobre os tipos de comportamento, vejo uma graciosa mão levantada. Era Maria de Lourdes, talvez a mais bonita das trinta bonitas alunas daquela classe:

“Professor, eu tenho alguns difíceis problemas de comportamento. Como sabemos que o senhor tem um escritório no Centro da Cidade, eu poderia lá ir num dia que o senhor fixassasse?“

Com particulares dificuldades, mas que sempre mantive dentro de mim, consegui que Maria de Lourdes não tivesse a oportunidade de encontrar-me no meu escritório. O ano acabou e todas as alunas dos Cursos de 2º. Grau do Colégio La-Fayette conseguram superar com boas médias os seus empenhos escolásticos.

Mas as exceções não acabam aqui. No meio do ano letivo 1956 recebo um convite muito particular vindo da Direção do Colégio Felisberto de Meneses: um professor de Filosofia se retirara O porque consistia no fato que não conseguira dominar os ânimos particulares de uma sua classe do turno da noite. Assim. numa noite do doce inverno carioca entro na sala de aula rebelde. Os alunos, porque era uma turma só de homens, me olham surpresos. E eu os surpreendo lentamente. Recompondo a matéria do antigo professor, as junto a continuadas considerações gerais de filosofia que podem parecer mais uma troca de idéias do que de lições. Os alunos rebeldes se revelam a cada lição sempre mais e mais interessados e partecipantes. E assim chegamos ao final do ano, sem maiores danos.

Vivo em 1955 outro episódio formativo. Recebo do setor especializado do Ministério da Educação e Cultura um convite para realizar um curso de Habilitação de professores de História, tendo como destinação Vitória, Estado do Espírito Santo. Esses cursos tinham a função de legalizar, através de um curso intensivo de um mês, com imediatos exames de verificação da aprendizagem, professores estaduais que não possuiam o título legal da licenciatura. Em geral tratavam-se de professores de longa experiência, com algumas exceções de presenças jovens. O grande problema com que então me confrontava não era em verdade o curso mensal, que transcorria sem surpresas, mas os exames posteriores. Isto porque se os professores não conseguiam superar os ditos exames, perdiam o direito de trabalhar. Preso por uma responsabilidade tão grave, eu encontrava serenidade interior somente nos banhos de mar que cada dia, depois da aulas, eu fazia nas águas inéditas da praia de areias monazíticas de Guarapari. Depois, tudo correu bem em Vitória; mais para mim, o jovem professor que ainda devia completar seus vinte e quatro anos, do que para os professores definitivamente aprovados.

No ano seguinte repeti a experiência no Rio Grande do Sul, na cidade de Sant’Angelo. Neste 1956 já me sentia um pouco mais amadurecido diante da empresa que o MEC me oferecia. O mês em Sant’Angelo transcorreu tranquilo. Pude então entrar em contacto com um território brasileiro que me era desconhecido. Em companhia de Mary Gay, a filha do comandante do Regimento da Cidade, eu percorria quase todas as semanas as lonjuras dos pampas e gozava a grandeza das Ruínas das Missões Jesuíticas. No final do Curso, todos os professores tiveram serena aprovação em suas provas.

A partir de 1957 a minha atividade docente se acentua, alargando-se em outros Colégios e Cursos de Vestibular. De particular importância me se revelavam as aulas do Curso da noite do Colégio Brasil, em Niterói, isto porque para chegar até a Alameda onde se encontrava o Colégio, eu viajava numa ida-e-volta deliciosa nas barcas da Cantareira que, singrando as águas da esplendorosa Baia da Guanabara, me levavam a Niterói e me traziam sempre de volta para a “Cidade Maravilhosa”. E então apreendí a verificar e gozar a beleza sem fim do Rio de Janeiro visto das águas. Tudo isso eu muitas vezes comunicava aos meus alunos niteroienses, em geral mais tranquilos do que aqueles cariocas.

A minha atividade no Colégio Brasil me ensejou uma outra conquista, desde há muito desejada: o salto na direção do ensino universitário. E, mais claramente, daquele de Literatura Brasileira. Nos anos de 1958 e 1959 realizo finalmente este meu sonho. Por contrato entro na Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF). Porém, nesses anos não obtenho ainda o almejado curso de Literatura Brasileira, por falta de vaga. Deveria esperar. Faço-o exercitando o magistério de uma disciplina que eu sentia bastante distante dos meus interesses, Estatística Educacional. Como sempre amei a sociologia, nessas passageiras aulas eu aplicava sempre o método sociológico para explicar aos atentos alunos do Curso de Didática os muitos meandros da matéria que deveriam aprender comigo que a quase ignoravo.

O interesse pelo magistério da Literatura Brasileira, parte integrante do meu crescente ritmo de atividades literárias, me levaram a criar um meu próprio Curso para os candidatos às Faculdades Humanísticas: Nasce assim o utópico e fugaz Curso Paidéia, de literatura, arte e cultura geral.

Mas, nada é inútil. Morto o Curso Paidéia, no mesmo ano de 1959, crio uma publicação literária que deveria colocar em prática todos os meus ideais relazionados com o ensino de literatura e com a literatura brasileira. Tendo como sócio Waldir Ribeiro do Val, crio o Anuário da Literatura Brasileira e, com este, a Editora do Anuário da Literatura Brasileira. Tendo o seu primeiro número saído em 1960, o Anuário conquista um grande sucesso nacional, com transbordamento para áreas correspondentes no Exterior.

Com a realização do Anuário, em particular com a meticulosidade de sua metodologia de trabalho e capacidade de documentação derivada de surpreendente atividade ligada à pesquisa literária, a minha natureza de professor de filosofia lentamente se transforma no seu derivado lógico, o docente de literatura.

Quando no dia 15 de novembro de 1962, a convite do Itamaraty, Ministério dos Negócios e Relações Exteriores, aonde eu trabalhara por todo o 1961 escrevendo a parte “Cultura” do Livro Brasil, pego um jato da Panair que partirá do Rio diretamente para Roma, para criar em Veneza, na Universidade Ca’ Foscari, cursos de língua portuguesa e de literaturas de língua portuguesa, que logo em seguida, por convite pessoal, extendo exaustivamente à Universidade de Pádua, o jovem professor de filosofia e história, partido em 1955, vê o seu retrato ¾ ampliado numa dimensão que naquele momento ulisseo lhe era impossível de quantificar.

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