quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A Sereiazinha (4) - por Hans Christian Andersen

(Continuação)Foi também duma pompa como nunca se vê na terra. As paredes e os tectos na grande sala de baile eram de vidro espesso, mas claro. Várias centenas de conchas colossais, cor-de-rosa e verdes de erva, alinhavam-se em filas de cada lado com um fogo azul ardente, que iluminava toda a sala, e brilhava para o exterior através das paredes, de modo que o mar lá fora estava completamente iluminado. Podiam-se ver todos os inumeráveis peixes que nadavam perto das paredes de vidro: nuns brilhavam as escamas vermelhas de púrpura, noutros pareciam estas de prata e de ouro. No meio através da sala fluía uma larga torrente na qual dançavam os cavalhei¬ros marinhos e as damas marinhas, ao som das suas próprias e belas canções. Tão bonitas vozes não têm os seres humanos na terra! A sereiazinha foi quem cantou melhor, bateram-lhe palmas e por um momento sentiu grande alegria no coração por saber que possuía a voz mais bonita de todas na terra e no mar. Mas logo voltou a pensar no mundo por cima dela. Não podia esquecer o belo príncipe e a mágoa de não possuir, como ele, uma alma imortal. Por isso escapou-se do palácio e, enquanto lá dentro havia cantos e júbilo, foi sentar-se triste no seu jardinzinho. Ouviu então soar uma trombeta em baixo através da água e pensou: «Agora, vai de barco lá em cima, certamente, aquele de quem gosto mais do que pai e mãe, aquele a quem está preso o meu pensamento e em cujas mãos quero pôr a felicidade da minha vida. Tudo quero arriscar para o ter e alcançar uma alma imortal! Enquanto minhas irmãs dançam lá dentro no palácio de meu pai, vou à bruxa do mar, de quem sempre tive tanto medo, mas que talvez me possa aconselhar e ajudar.»


Então partiu a sereiazinha do seu jardim em direcção ao remoinho efervescente, atrás do qual morava a bruxa. Esse caminho nunca o havia feito antes. Não cresciam aí flores, nenhumas algas, apenas o fundo de areia cinzento e nu se estendia em direcção aos remoinhos, onde a água, como rodas de moinhos efervescentes enrolava e rasgava tudo o que apanhava, levando-o consigo para o fundo. Teria de ir por meio destes rodopios esmagadores para entrar no distrito da bruxa do mar e aqui, por um bom bocado, não havia outro caminho senão sobre o lamaçal bolhento e quente, a que a bruxa chamava a sua turfeira. Por detrás ficava a casa desta ao meio, dentro dum bosque estranho. Todas as árvores e arbustos eram pólipos, metade animais metade plantas, pareciam serpentes com centenas de cabeças que cresciam da terra. Todos os ramos eram braços longos, viscosos, com dedos como vermes flexíveis e, junta por junta, moviam-se da raiz à ponta mais extrema. Tudo o que no mar podiam apanhar enroscavam-no e não o abando-navam mais. A sereiazinha ficou toda aterrada e parou aí de fora. O coração batia-lhe de medo, esteve quase para regressar, mas pensou então no príncipe e na alma humana e assim tomou coragem. Atou firmemente o cabelo longo e flutuante à volta da cabeça para que os pólipos não o pudessem agarrar, juntou as mãos no peito e lançou-se como os peixes sabem cruzar a água, por entre os horríveis pólipos que estendiam os braços e dedos viscosos para ela. Viu como cada um deles tinha alguma coisa que apanhara, centenas de pequenos braços seguravam-na como fortes ligaduras de ferro. Os homens que haviam morrido no mar e tinham vindo ali para o fundo, olhavam como carcaças brancas nos braços dos pólipos. Remos e caixas seguravam-nos fortemente, esqueletos de animais terrestres e uma sereiazinha que tinham prendido e estran¬gulado, o que foi para ela bem mais horroroso.


Chegou então a um grande lugar lamacento no bosque, onde cobras de água grandes e gordas rolavam, mostrando as feias barrigas amarelas claras. No meio desse lugar erguia-se uma casa feita com os ossos brancos dos homens naufragados. Aí estava sentada a bruxa do mar, dando de comer a um sapo na mão como os homens dão açúcar a comer a um canariozinho. Às cobras de água horríveis e gordas chamava ela os seus pintainhos e deixava-as revirarem-se no peito grande e esponjoso.


- Sei muito bem o que queres! — disse a bruxa do mar. - É uma parvoíce da tua parte! De qualquer maneira, terás a tua vontade satisfeita, porque te trará infelicidade, minha linda princesinha! Queres deitar fora a tua cauda de peixe e em vez dela receber dois apoios para andar como os seres humanos, a fim de que o jovem príncipe se possa enamorar de ti e o possas ter e também uma alma imortal. — E com isto a bruxa do mar riu tão alto e tão horrivelmente que o sapo e as cobras caíram no chão e revolveram-se. - Vens precisamente a tempo! - disse a bruxa do mar. Amanhã, quando o sol nascer, já não poderei ajudar-te, antes dum ano passado. Vou preparar-te uma bebida, mas terás de nadar, antes de o sol nascer, para terra, sentares-te na praia a aí bebê-la. Então separa-se a tua cauda e fica aí ligado aquilo a que os homens chamam umas lindas pernas; mas fazem doer, quero dizer-te, é como se uma espada afiada te trespassasse. Todos que te olharem, dirão que és a mais bela criatura que jamais viram. Manténs o teu anelar ondulante, nenhuma dançarina será capaz de assim andar como tu, mas cada passo que deres, é como se pisasses uma faca cortante, que te fizesse correr o sangue. Se queres sofrer tudo isso, ajudo-te!


- Sim! — disse a sereiazinha com voz tremente, e pensando no príncipe e em alcançar uma alma imortal.


- Mas lembra-te - disse a bruxa - que, quando receberes forma humana, não podes nunca mais voltar a ser sereia! Não podes descer através da água para as tuas irmãs ou para o palácio do teu pai e, se não conseguires o amor do príncipe, de maneira que ele por ti esqueça pai e mãe, fique preso a ti com todo o pensamento e que um sacerdote junte as vossas mãos de forma a tornarem-se marido a mulher, não receberás nenhuma alma imortal! Na primeira manhã, depois de ele se ter casado com outra, quebrar-se-á o teu coração e transformar-te-ás em espuma na água.


- Quero! — disse a sereiazinha, ficando pálida como morta.


- Mas a mim também tens de pagar! - disse a bruxa. - E não é pouco o que exijo. Tens a voz mais bonita de todas aqui no fundo do mar, com ela crês vir a encantá-lo, mas essa voz tens de ma dar. O melhor que possuis, quero tê-lo pela minha bebida preciosa! O meu próprio san¬gue tenho de oferecer nela para que a bebida fique cortante como uma espada de dois gumes!


- Mas se me tiras a voz - disse a sereiazinha - o que me resta?


- A tua bela figura - disse a bruxa —, o teu andar ondulante e os teus olhos expressivos, com os quais podes bem seduzir o coração dum ser humano. Então, perdeste a coragem? Estende a linguinha, que eu corto-a como paga e receberás a bebida eficaz!


- Assim seja! - disse a sereiazinha e a bruxa foi buscar a caldeira para cozinhar a bebida de feitiço. - A limpeza é uma boa coisa! - disse ela, e esfregou a caldeira com cobras que atou em nós, depois arranhou-se no peito e deixou escorrer aí dentro o sangue negro. O vapor produzia as figuras mais estranhas, de fazer tremer de medo. A cada momento deitava a bruxa novas coi¬sas na caldeira e, quando verdadeiramente estavam a ferver, era como se crocodilos chorassem. Por fim a bebida ficou pronta, com o aspecto da água mais clara.


- Aqui a tens! - disse a bruxa, e cortou a língua à sereiazinha, que então ficou muda, não podendo cantar nem falar.


- No caso de os pólipos te atacarem, quando regressares pelo meu bosque - disse a bruxa -, lança-lhes apenas uma única gota desta bebida, rebentam-lhes os braços e os dedos em mil bocados.


Mas a sereiazinha não precisou disso, os pólipos recuavam aterrorizados diante dela, quando viam a bebida brilhante que luzia nas suas mãos, como se fosse uma estrela cintilante. Assim atravessou em breve o bosque, o lodaçal e os remoinhos efervescentes.


Podia ver o palácio do pai. As luzes estavam apagadas na sala grande de baile. Dormiam certamente todos aí, mas não ousava procurá-los, agora era muda e queria deixá-los para sempre. Era como se o coração se lhe despedaçasse de mágoa. Entrou de mansinho no jardim, tomou uma flor de cada um dos canteiros das irmãs, lançou com os dedos milhares de beijos na direc¬ção do palácio e subiu através do mar azul-escuro.


O sol ainda não havia rompido, quando viu o palácio do príncipe e subiu a majestosa escadaria de mármore. A lua brilhava bela e clara, A sereiazinha bebeu a bebida ardente e forte, e foi como se uma espada de dois gumes lhe atravessasse o fino corpo. Então perdeu os sentidos e ali ficou como morta. Quando o sol brilhou por sobre o mar, acordou e sentiu uma dor aguda, mas na sua frente estava o belo príncipe que fixava os olhos negros de carvão nela, de modo que baixou os seus e viu que a cauda de peixe havia desaparecido e que possuía as mais bonitas perninhas que uma rapariga podia ter. Mas estava completamente nua, por isso, envolveu-se no seu longo cabelo negro. O príncipe perguntou-lhe quem era e como tinha vindo parar ali e ela olhou-o docemente e, contudo, muito triste com os seus olhos azuis-escuros, falar não podia. Então ele tomou-a pela mão e conduziu-a ao palácio. Cada passo que dava era tal como a bruxa lhe dissera, como se pisasse agulhas pontiagudas e facas afiadas, mas suportou-o de bom grado. Pela mão do príncipe subiu ligeira como uma bolha de ar e ele e todos admiraram o seu andar gracioso e ondeante.


(Continua)





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