sábado, 18 de dezembro de 2010

Sublimação e idealização *



João dos Santos (1913-1987) **

(Texto enviado por Clara Castilho)


Será isto uma «Recordação encobridora» ou enganadora? Freud designou assim uma recordação intensamente vivida, per¬sistentemente retida e muito nitidamente consciente. Trata-se, explica Freud, de uma recordação infantil inocente quanto ao que aparece como manifesto (“Conteúdo manifesto”) mas que esconde um “Conteúdo latente”), muito rico de fantasias sexuais recalcadas. Acontece neste caso como acontece nos sonhos que, acontecimentos vividos na realidade presente, servem, para de certa forma, cobrir motivos «inconfessáveis» anteriores, produ-tores de excitação e ansiedade. Difere aparentemente dos sonhos porque uma vez formada, a «Recordação encobridora» vai sendo retocada com novos detalhes que se relacionam com a emoção e o tema inicialmente reprimido.

Na verdade os sonhos têm ape¬nas mais dinamismo, porque, o tema é sonhado e ressonhado, até se dar ao assunto uma solução não só sonhável como até confessável, quando o contamos aos outros. Costumo dizer aos meus alunos depois de uma prelecção deste género: «não vão acre¬ditar no que eu digo, isto é apenas matéria para reflectir e para conversar». Neste momento, eu diria melhor, aos meus leitores: Não acreditem em histórias verdadeiras... as autênticas são fal¬sas. As histórias verdadeiras são as da ingénua «Carochinha» e do mal-intencionado João Ratão; as do lobo mau escondido sob as roupagens de uma avozinha de “Capuchinho Vermelho” e a da curiosa e maliciosa “Alice no País das Maravilhas”. Porém a mais autêntica e aliciante de todas as histórias, é ainda, a do nascimento do Menino Jesus, porque é aquela que nos serve a todos e para toda a vida.

Ela nos ajuda a purificar a mãe e a idealizar o pai. O drama básico de cada um de nós, é o de termos descoberto tudo, antes da entrada para a escola e de só depois descobrirmos, que os meninos da escala sabem as coisas doutra maneira. A mim creio, o Carlos da Travessa foi, que me ensinou, logo no primeiro dia, um gesto interessante; quando o reproduzi em casa, o meu pai achou que, embora engraçado, poderia ser tomada pela professora como arrogante, o que eu não entendi mas passei adiante. Com os meus primos tinha já recebido certas noções elementares e participado em jogos recatados visando o desvendar do mistério do nascimento dos bebés. As noções mais elaboradas tinham-me sido no entanto fornecidas, através das histórias tradicionais que a tia Aurora me contava, das filhós e festas sagradas e das histórias santas da tia Virgínia.

Na minha família a pessoa mais versada em Catecismo era a tia Virgínia, a do lado do meu pai (que a outra era livre-pen¬sadora). Contou-me tudo muito bem, sobre o Menino Jesus. Recordo-me porém, de não ter conseguido entender porque é que aquele Menino tinha ficado bebé para sempre. Creio que a minha tia, como outros devotos, separava o culto de Jesus Cristo do culto do Menino Jesus e eu provavelmente admirava-me de ver que a imagem do Menino se não modificasse de ano para ano, enquanto que eu me sentia crescer. Achava tudo enterne¬cedor mas ficava talvez confuso e triste, a pensar que passada a festa natalícia, a história do Menino era relegada para segundo plano. Hoje compreendo, depois de ter lido muito nos livros e nas pessoas, que na criança, o que mais agrada às pessoas crescidas é a sua inocência. Quando os bebés crescem e começam a explicar-se, os adultos são forçados a reconhecer, sem o cons-ciencializarem, que nas crianças se pode projectar toda a malícia e não só, na agressividade de alguns que se incomodam com a presença das crianças, como até naqueles que contam e escrevem histórias aparentemente inocentes como acontece segundo alguns comentadores na própria “Alice no País das Maravilhas”.


O Natal é a festa que na meninice mais nos alicia, porque se inspira na história do nascimento mitificado de uma criança e porque toda a família se reúne e se comem guloseimas. Mais importante, porém, são os presentes que, na presença de todos e com muitos doces, se recebem como prémio da nossa inocência de meninos, melhor dito, da nossa suposta ignorância acerca da forma como se geram e aparecem os bebés. Que as explicações da criança são diferentes da dos adultos, é evidente; mas quanto à ignorância, ela é apenas a ilusão retrospectiva do adulto, projectada sobre as crianças que estão à sua guarda.

 A figuração natalícia surge em cada casa ou em cada país, de formas diferentes mas sempre sublimadas. Na figuração do presépio há as minúsculas figuras que o compõem e que, em certo sentido, se pode comparar à «Recordação encobridora»: um acontecimento cristalizado num bonito quadro. A árvore do Natal é prenhe de frutos radiosos, apetecíveis e em geral intocáveis, porque apenas celebram um nascimento e anunciam os presentes. O pai Natal de uma tradição nórdica -a de S. Nicolau - é o avozinho cuja malícia ingénua e a bondade infinita, representa a outra face do pai ameaçador face aos pecados dos filhos.

O meu amigo Emílio, que trabalha no mesmo campo que eu, acha que algumas pessoas ficam tristes depois de passadas as festas natalícias, e atribui o facto à realidade com que as pes¬soas se confrontam de novo, depois de terem mergulhado por um tempo, no banho da sua inocência infantil. Um outro compa¬nheiro de trabalho, o João, acha que isso acontece porque as pessoas grandes e pequenas, se procuram ver, narcisicamente, no Menino Jesus, da sua própria infância. Este desejo é bastante meritório e todos nós somos mais ou menos religiosos - todos nós sofremos do que Freud designou por “amnésia infantil”, isto é, da necessidade de tudo esquecer, depois de tudo terdes des¬coberto. Aos 5 anos uma criança conhece à sua maneira e de acordo com a sua filosofia própria, todos os mistérios da vida dos adultos. Aos 7 esquece tudo, com a ajuda de conhecimentos supostamente objectivos que os companheiros, em termos esca¬brosos, ou os professores em termos científicos lhe administram. Mas se tudo se pode teoricamente e objectivamente saber acerca dos pais que fazem amor e que fazem bebés, nada pode ser evo¬cado das emoções profundas que nos abalaram quando as des¬cobertas foram feitas, quer dizer, antes de serem faladas. Nesse sentido todos temos necessidade de guardar a nossa inocência e ignorância infantis. Mesmo o catedrático de sexologia.


Em psicanálise infantil usam-se por vezes - e até certa idade - os brinquedos de presépio ou equivalentes. As crianças em terapia brincam com figuras de presépio de maneira extraor¬dinariamente dinâmica, e de tal forma, que, de facto, o presépio nunca chega a sê-lo. O Retábulo, painel de altar ou Recorda¬ção encobridora é constantemente desenvolvido e reparado num jogo em que o Eu da criança, parece procurar modelos para uma nova e mais sólida estrutura psíquica; é idêntico ao que acontece nos sonhos que nos permitem até abordar em conversa, terríveis histórias inventadas ou realizadas. A criança realiza com a figu¬ração do presépio a vida da família nos aspectos panorâmicos e convencionais que encobrem o grande melindre do mistério da intimidade dos pais. As flores e árvores com frutos desenhados pelas crianças em situação terapêutica, são muito sugestivas da pureza do corpo da mãe e da curiosidade que impendem sobre frutos do seu ventre. O Avô Natal, o pai que renunciou à sua atitude punitiva e competitiva, a boa imagem parental, aparece sob roupagens diversas nas concepções infantis.


As histórias para crianças, como os mitos antigos, servem para ajudar as pessoas a vencer certos medos que se ligam aos misté¬rios insondáveis da vida e da morte. Mas, as histórias para crian¬ças são como a intimidade dos pais, de um grande melindre para serem contadas por toda a gente.

Proponho à vossa reflexão o seguinte:

Há pessoas que são capazes de fazer histórias para crianças. Há pessoas que são capazes de contar histórias às crianças. Não é a mesma coisa criar para as crianças e falar às crianças. Há pessoas que não podem falar às crianças porque não as sabem ouvir (as que têm na sua frente e as que têm dentro de si). Saber fazer histórias para crianças e saber contar histórias às crianças, tema fundamentalmente numa meditação de Natal.
Cada um fabrica inevitavelmente «Recordações encobrido¬ras», mitos e histórias para se contar.

A história do nascimento do Menino Jesus é a mais bela história que cada um se pode contar.
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Lisboa, Dezembro de 1980


*Publicado no Jornal das Letras, Dez, 1980 e em “Ensaios de educação II”- Livros Horizonte, 1991 – p. 199-200.

**Psicamalista e Pedopsiquiatra, reformulador dos serviços de saúde mental infantil na década de 60 (ver www.casadapraia.org.pt)


O desenho foi feito por uma criança do Centro Doutor João dos Santos.





2 comentários:

  1. Fantástico o que pode ser interpretado a partir da árvore e do presépio. Não é por acaso ou por simples costume que o Natal se renova todos os anos, mesmo para os adultos que já perderam a inocência.Que belos textos os teus, Clara!

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  2. Os últimos parágrafos, sobretudo, são muito importantes.

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