quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

UMA EXPOSIÇÃO RETROSPECTIVA MUITO ESPECIAL EM VENEZA

Sílvio Castro




O sempre muito movimentado ambiente de exposições artísticas de Veneza, passada a Bienal de Arquitetura de 2010 que alcançou grande sucesso de público e de crítica (cf. nosssos dois comentários sobre as participações de Portugal e do Brasil na dita Bienal, publicados nas páginas deste mesmo blog), este mesmo ambiente assistiu em dezembro a uma retrospectiva muito especial pela personalidade e história do autor exposto, bem como pelo significado de sua obra, quase absolutamente desconhecida do grande público. Trata-se da exposição retrospectiva de Roberto Fiorentini, “Storie del segno”, que teve lugar de 3 ao 14 de dezembro de 2010, no “Centro Culturale – Renato Nardi”, com a curadoria de Toni Toniato, crítico veneziano de grandes méritos. O Centro Cultural Renato Nardi, localizado na ilha da Giudecca, sede da restrospectiva, é uma histórica entidade de encontros dos socialistas de Veneza. Roberto Fiorentini era um dos seus constantes frequentadores.

Roberto Fiorentini, falecido recentemente, era um homem de cultura, um economista de profissão e político de vocação pelo empenho social que lhe foi sempre uma constante, mas que também se exprimia com mestria em diversos campos artísticos, da poesia dialetal, fonte de suas canções, até as artes visuais. preferencialmente com a prática do desenho. Ainda que auto-didata neste setor, o seu signo expressivo atingirá alturas incomuns. Mas, a atividade artística de Fiorentini era uma como ocupação secundária no tempo que lhe deixava livre a sua atividade professional de economista e administrador público. Especialista em economia dos meios de transportes, ele exerceu importantes encargos na administração pública veneziana do setor, em particular como presidente do sistema de transportes urbanos da ACTV, com os vaporetos e motoscafos pelas águas canais entre as ilhas venezianas e os ônibus públicos que unem a cidade histórica lagunar com o seu território municipal e provincial no continente.

O economista não sufocava o lado artístico de Roberto Fiorentini, tendo ele muitas vezes unidos esses dois caracteres nas suas atividades políticas, particularmente quando exerceu em diversas oportunidades mandatos na Câmara da Província de Veneza. Em determinado período dessas atividades, e mais precisamente em 1970, ele realiza a importante série de vinhetas sobre a reforma da assistência psiquiátarica desenvolvida no dito periodo. Na retrospectiva da Giudecca podem-se ver diversas dessas vinhetas, todas de grande força expressiva por um desenho que sabe captar o real ainda que apresentando-se predominante em tons quase surrealistas.

Ao lado desses desenhos de grande empenho político-social, a exposição apresenta igualmente outros produtos da capacidade criadora do caricaturista que estava sempre presente em Roberto Fiorentini. Caricaturas impregnadas de ironia, de um sentido de humor de grande maturidade.

Juntamente com o artista expontâneo e natural que encontrava nas vinhetas e nas caricaturas formas de coerente expressão pessoal, em determinado momento de sua vida Roberto Fiorentini se lança a um projeto mais amplo e que obrigava necessariamente uma maior aplicação e desenvolvimento técnico. Fiorentini começava então o seu ciclo de “copista artístico”. Debruçando-se mais diretamente no estudo e conhecimento dos problemas e técnica do desenho e do uso nele das cores, ele enceta o caminho que idealizara: a cópia de grandes artistas italianos do Renascimento, buscando neles a objetivação de um possível tipo italiano nos séculos. Nasce assim uma série de preciosas “cópias” que me levaram a escrever para o meu livro Il Labirinto e i Segni – Esercizi di critica d’arte (1970-2006), edição do Centro Internazionale della Grafica di Venezia, 2007 (com uma 2ª. ed. em 2009), o artigo “L’arte della copia dell’opera d’arte. Roberto Fiorentini e la copia come opera artistica”.

Por muitos anos Roberto Fiorentini se dedicou , particularmente no “Cabinet des arts graphiques” do Louvre, à cópia artística. Com a sua Retrospectiva podem-se ver cópias de Pisanello, Andrea del Sarto, Carraci, Michelangelo, Carlo Dolci, Gentile Bellini, Raffaello, Antonello da Messina, Veronese e outros artistas.
Fiorentini principia esta preciosa série quando já se aposentara e, sucessivamente, em anos seguintes; mais precisamente entre 1999 e 2005. Ao lado dessa inovadora prática de sua operação artística, ele se dedica com ampla continuidade ao hábito de contar com o lapis estórias aos seus pequenos netos, assim como já fizera para com os seus dois filhos.
Tudo se interrompe tragicamente em 2005, quando ele se vê atacado pela
doença mortal da SLA.

A partir de então o seu sistema muscular entra em paulatina e constante decadência. Depois de um natural período de parada nas suas atividades artística, Fiorentini as retoma, quase como uma última de terapia, em 2008, como ele mesmo testemunhou nas breves notas deixadas pelo seu grande espírito de comunicação:


“Al momento, è appunto alla fine del mese di gennaio che scrivo questi appunti, l’attività debilitante della malattia si è manifestata nel respiro, e negli arti. Le mani, in particolare, hanno perso la capacità di reggere e guidare una matita, fanno difficoltà a girare le pagine di un giornale e si arrestano impotenti allorcfhè cade a terra un oggetto minuscolo que sono impossibilitato a raccogliere.

Da alcuni giorni, con difficoltà, ho cominciate a disegnare delle vignete che, pur con esito incerto, raccontano le storie che ho pensato e che sono delle considerazioni su quel che mi sta succedendo, sulle difficoltà del presente e le incertezze e le paure del futuro.”


Neste estado de poucas esperanças de vida, Roberto Fiorentini supera até mesmo os próprios temores existenciais contando com intensidade a sua doença mortal, tudo num quadro testemunhal de imensa grandeza moral e de grandes traduções. Os desenhos das vinhetas desta série mostra um homem consciente do fim próximo, mas que conta o desenrolar da própria trágica história com um profundo sentido de ironia suspenso na constante atmosfera de integração com a vida que cada vinheta consegue comunicar. Trata-se de um conjunto de desenhos que contam de uma grande presença humana e que esperam urgentemente por um seu editor.

Roberto Fiorentini morre no dia 12 de abril de 2010, aos 73 anos. Ele deixa, traduzido pela bela retrospectiva de suas obras, um alto testemunho cultural e de moralidade civi. Um exemplo de intensidade, principalmente neste momento de uma Itália que passa por uma grande crise política e de moralidade pública.

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