terça-feira, 21 de dezembro de 2010


Uma história de Natal
ou
Duas meninas e um relógio

Maria Cecília Correia

Um dia o reloginho vermelho amuou. Era um despertador com duas orelhas, redondo, e encostava-se a outros relógios também vermelhos e de iguais orelhas, pacata colecção em diferentes tamanhos. Seus tiquetaques eram desafios musicais que alegravam a cómoda do meu quarto. Mas, quando resolveu amuar, nada o convenceu a mudar de ideias. Primeiro, tentei umas leves palmadinhas, depois uns abanões fortes, depois ainda, com leves esperanças, pu-lo de rabo para o ar. Mas ele, vá lá saber-se porquê, manteve-se firme. Que fazer? Aceitei a sua teima, ou a sua “doença”, quem sabe? E guardei-o no fundo de um gavetão da cómoda sobre a qual conversava alegre com os seus pares.

Ficou no meio do que quase não anda a uso e que por largos meses se esquece. Só às vezes, ao remexer coisas, dava com ele.

- Olha o relógio vermelho! E, como o remexer nunca é ordem, lá ficava ele tapado, de novo escondido.

Um dia, em novas remexidas, voltou o relógio a aparecer. Tirei-o para fora, tive-o nas mãos, olhei-o com cuidado e desabafei:

- Não serves para nada. Para nada? Deixa-me olhar bem para ti. Atenta, virei-o, revirei-o e aceitei a ideia: calhas bem em moldura para retrato.




Vá de o desmanchar aos poucos, orelhas, parafusos, pernas. Umas tantas coisas saíram com facilidade, mas as outras…. Alicate, chaves de fenda, empurrões em jeito de alavanca… E pancada, muita pancada. Lá consegui. Depois escolher foto antes de voltar a armar tudo (difícil que foi), procurando as peças espalhadas sobre a cama.

Claro que preferi para a exótica moldura uma foto das minhas Princesas-Cinderelas-Sereias (títulos por elas escolhidos), Raposinhas por mim chamadas, embora que o nome lhes cause estranheza (“Rapozeta, Pintalgreta, senhora de muita treta…”, não era assim, Mestre Aquilino?). Com um lote de fotos espalhado à minha frente, ia escolhendo pelos tamanhos: esta não, que é pequena, aquela não cabe no redondo do vidro, e por aí fora… Difícil!

Até que apareceu a certa, e que mostra as meninas preparando o Presépio com muita compostura. Nesse dia, nada de Cinderelas a contas com a madrasta e suspirando pelo príncipe, nada de sereias a fugir do polvo gigante. Encantadas, atentas, entregues à sua tarefa. Angélicas mesmo!

Depois, quando elas já no centro do vidro e o relógio milagrosamente armado, ouvi um tímido tiquetaque, brandinho, a medo. Tique------taque.

-Que ouço? Devo estar enganada! Mas não. De tímido, passou ao antigo som alegre, fanfarrão mesmo: tiquetaque, tiquetaque, tiquetaque. E, ao som daquele trinar alegre e ritmado, as figurinhas animaram-se como as de uma “cascata” à moda do Porto: Eleonor, com as mãos sapudinhas, ajeita o musgo com mil carinhos, põe, dispõe, alisa. Rosa, com o burro entre as mãos, hesita em pô-lo antes ou depois da vaquinha. – José, onde fica? Talvez aqui, para ver melhor o Jesus. A gruta, ainda por acabar, sem tecto de colmo, é um amontoado de seixos da praia. Nus, polidos, trazem ao Presépio o mar calmo e verde de Galapos – onda vai, onda vem, misturadas ao musgo e aos pastores que carregam borregos aos ombros. Contra a janela, as hastes enormes das bagas vermelhas como quando nascidas junto do ribeiro. Mil azáfamas para que o Presépio seja coisa linda e ao jeito da sua criação.

– Avó, canta tu, nós ainda não sabemos bem. E a avó, dócil, entoa:

“Ó meu Menino Jesus/a tua mamã é bonita/e tu és lindo também/ó meu Menino Jesus”.

Lá no fundo, num longe sem distância, minha mãe assiste a mais uma armar do Presépio, ritual que passa entre os dedos e as gerações. Assiste e sorri com ternura. Estas não são bem as suas meninas, antes as minhas. Talvez que sejam somente um florir longe dos seus braços – ou talvez não, quem sabe destes prolongamentos para lá de presenças concretas? Ela fala e só eu a ouço: “o musgo do pinhal do Zé rebelo era muito mais fofo, lembras-te? Vocês traziam uma canastra cheia, sempre o dobro do que era preciso”. Este, colhido em terra barrenta, não é tão bonito, mas, como o outro, é a base da construção. A mãe lembra também: “ E porque não cantas a nossa toada antiga, e ao uso do povo? “

Ó meu Menino Jesus/quem te deu esses calções?/foi a minha avó Santana/ com casinhas e botões….”

– Não, mãe, essa fica para mais tarde. Calções no Menino, sempre de saias, não se ajusta; é tirá-lo do berço e do colo da mãe. E avó Santana, é muita confusão.

Tiquetaque, tiquetaque, tiquetaque. Reloginho canta, mais vivo do que nunca. Ele já não marca o tempo – nem ponteiros tem sequer… O tempo, que lhe importa? Ficou num outro destino: ser o canto, o companheiro das meninas, ter o direito de estar agora nessa festa passada há dois anos. Direito também de ser elemento activo nessa outra festa a acontecer em Dezembro a vir. E, no tempo da espera, que segredos que eu não ouço dirão estes três, ao som de um tiquetaque alegre e fiel? Mãos sapudinhas, olhar interrogador, cantar ritmado, combinam bem… se combinam! O irreal entrou no nosso quotidiano de uma forma concreta e, quando estas coisas acontecem – porque acontecem mesmo – só temos que alegrar-nos com elas.

Dezembro de 1992



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