Manuela Degerine
Etapa 1, até Vila Franca de Xira
Primeira parte: o trajecto para o Parque das Nações
Eu hei-de propor que cada ministro seja obrigado a viajar por este seu reino de Portugal ao menos uma vez cada ano.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
São 8 deste mês de Setembro, ano de graça de 2009, uma terça-feira, dia sem nota e de boa estreia. Às sete e trinta saio de casa. Levo mochila e botas de caminhada, um litro de água, nozes, passas, chocolate preto, biscoitos enriquecidos com germe de trigo e uma quantidade de vitaminas. Rua do Forno do Tijolo, Rua Angelina Vidal, Rua do Vale de Santo António. No Poço do Bispo começo a caminhar à beira do Tejo, entre os carros e o porto, numa zona que poderia ser aprazível.
Lisboa continua uma cidade de carros: a única capital do mundo onde não é possível apanhar o autocarro com uma mala. Por exemplo. Ora sem transportes atractivos, sem ruas acessíveis aos peões – não há cidade. Há estradas, viadutos, ruído, violência, gases tóxicos, carros estacionados nos passeios, quando há passeios; no meio disto, não apetece caminhar e mesmo, com frequência, não é possível caminhar.
Fui ontem descobrir o caminho dos Anjos ao Parque das Nações passando pelo Areeiro. Visto no mapa, não parecia má ideia, compensava o afastamento com a simplicidade do trajecto; pensava eu. Almirante Reis, Gago Coutinho, Estados Unidos da América, Infante D. Henrique – estava no Oriente. Pois... Lisboa não é uma cidade para os peões. Chegada à Av. dos Estados Unidos não pude prosseguir: por não haver passeio. Teimei até à Av. Dr. Arlindo Vicente, entrei numa zona caótica, por vezes também sem passeio, encontrei-me nas Olaias, depois em Marvila, prédios com terra à volta, espaço quase deserto, apesar da hora, oito da manhã, espécie humana só da variedade automobilística, a entrar no carro, a lustrar o carro e, em maior número, a circular de carro. Após idas e voltas, perdido não só o norte mas até o Tejo, percorri ruas desertas antes de apanhar um homus automobilisticus em situação de responder às minhas perguntas. Qual rio? O Tejo fica muito longe, vá à estação de Marvila, além em baixo, tenha cuidado, daqui até lá, isto não é seguro. Então aqui não se caminha? Isso queríamos nós, passeios, lojas e menos malandragem – como nos outros sítios. Segui naquela direcção porém, mais adiante, ao dobrar a esquina: avistei um homem a caminhar! Um ser com duas pernas como tantos que conheci em Queluz durante a infância e adolescência: um que nasceu na província e veio trabalhar para Lisboa. Um peão. Corri. O senhor sabe onde fica o Tejo? Entã nã sei? Pronúncia ainda alentejana. Quer ir para onde? Para o Poço do Bispo. Isso é muito simples, vai sempre em frente, lá adiante atravessa, desce pelas escadas e continua para baixo. O senhor vive aqui? Nã senhora, quem me dera, moro em Chelas. Como é por lá?... Nã é grande coisa, muito barulho, pouca vergonha: aqui é muito melhor. Ah... Despedimo-nos. Eu segui na direcção indicada, desci as tais escadas, passei junto a um bairro modesto mas humano, habitado decerto por alguns bípedes, quintais com hortas e parreiras, passeio de um lado da rua. Consegui chegar perto do rio. Carros e mais carros a acelerar, um ar compacto a entupir as narinas. Tonta de asfixia, avistei contudo, pouco depois, do outro lado da linha, dois atletas a correr. Passei também para aquele lado e, a partir dali, o percurso tornou-se tolerável, através da zona do porto, até ao Parque das Nações.
Por isso hoje mudo de trajecto, caminho nesta parte mais urbana, com passeios e peões, apesar dos carros, alguns em cima dos passeios, passo a Madre de Deus e o Beato, volto ao percurso à beira do rio. Garrett no início das suas viagens, num vapor apanhado no Terreiro do Paço, evoca a frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítios consagrados todos a recordações grandes ou queridas. E interroga-se: Que outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com esta?
Às nove e um quarto sento-me num banco junto ao Oceanário. Mudou o ambiente. Tenho a impressão de passar dos bastidores para o palco, aqui tudo se mostra atractivo, não há carros, as pessoas dispõem de lazeres, praticam desporto, usam roupas e equipamentos com marcas. Eu saboreio um pedaço de chocolate preto, verifico mais uma vez o itinerário, bebo um pouco de água. E sigo na direcção dos pilares da ponte – onde encontro a primeira seta amarela indicando o caminho de Santiago. Tudo bem, portanto, pode o leitor meu companheiro ficar sossegado: não nos havemos de perder. Falta-nos apenas caminhar mais seiscentos quilómetros. A pouco e pouco, um passo a seguir ao outro, levando o tempo que for necessário.
Previ ir hoje até Vila Franca de Xira. Mas... será possível? As minhas hiperbotas, compradas para esta aventura, escolhidas com mil precauções, para o caso de haver pedras soltas, para o caso de haver pedras molhadas, para o caso de haver lama, para o caso de haver areia, experimentadas desde há algum tempo, já me começam a fazer bolhas nos pés... Será que me engano?... Não é por acaso que os caminhantes costumam usar meias de lã. Porém, como o dia vai estar muito quente, calcei só um par de meias de algodão... Erro crasso.
Hesito em continuar.
sexta-feira, 28 de maio de 2010
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O prazer imenso que se percebe nesta crónica.
ResponderEliminar"Lisboa continua uma cidade de carros: a única capital do mundo onde não é possível apanhar o autocarro com uma mala."
ResponderEliminarAs cidades tornaram-se 'cidades de carros' e nas quais as pessoas 'não motorizados' se sentem alvos em movimento, não apenas Lisboa.
Mas a "a única capital do mundo onde não é possível apanhar o autocarro com uma mala"?
A única? Estou longe de as conhecer todas mas não sinto ser pior apanhar 'o autocarro com uma mala' em Lisboa que, por exemplo, em Paris, Roma, Londres, Madrid, Washington, ...
Simples 'liberdade literária' ou mais um caso de provinciano fascínio por tudo o que 'é de fora' e menosprezo pelo que é 'de dentro'?
Preferia que fosse provincianismo... No entanto trata-se apenas de figura de estilo constuída a partir deste facto: apanhar o autocarro com uma mala não é nunca fácil mas, nas outras capitais que conheço, continua autorizado; em Lisboa tornou-se proibido (excepto com malas de dimensões mínimas).
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