Manuela Degerine
Capítulo IV
Etapa 2, de Alverca à Azambuja
Primeira parte: de Alverca ao Carregado
Somos chegados ao triste desembarcadoiro de Vila Nova da Rainha, que é o mais feio pedaço de terra aluvial em que ainda poisei os pés. O sol arde como ainda não ardeu este ano.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
Todos os técnicos da caminhada insistem nesta regra: nenhum caminhante deve transportar mais de dez por cento do seu peso. Ora eu, com um metro e cinquenta e sete de altura, raro ultrapasso os quarenta e sete quilos. Não convém por conseguinte levar mais de quatro quilos e meio, o que transforma a escolha de uma mochila num problema de resolução complexa: as mais ergonómicas e práticas, com bolsas múltiplas e fechos em todas as direcções, chegam a pesar dois quilos e meio... Após ensaios demorados e dilemas duvidosos, optei por uma muito simples, um saco impermeável com duas alças e um cinto para o prender nas ancas, ganhando no peso, perdendo na funcionalidade pois, quando preciso de algo, água, maçã, protector solar, tenho que tirar a mochila, poisá-la, abri-la e procurar. Para facilitar esta busca, reparti a impedimenta em quatro embalagens de plástico, de cores distintas, a roupa, a higiene, a comida, o saco-cama, o que reduz o risco de os objectos, como é seu costume, se camuflarem no fundo da mochila no instante em que são com urgência necessários... Tenho, para além disto, uma bolsa-cinto onde coloco lenços, telemóvel, caneta, bloco (minúsculo), mapa (dobrado)... Não é o ideal mas paciência: adapto-me.
Saio de casa às seis horas de quinta-feira 24 de Setembro e, logo à saída do prédio, recebo um sinal do Espírito Santo, que me desliza pelo cabelo e é aparado pelo braço direito. A primeira reacção é de repugnância, malditos pombos, apanho alguma salmonela, vale não vale a pena voltar a casa, limpo o braço, apalpo o cabelo, que não parece sujo, opto por prosseguir. Sinal fasto ou nefasto? Rio-me. Sinto-me leve, apesar da mochila. E bem disposta.
Apanho o comboio para Alverca, ponto final da primeira etapa, atravesso a localidade, passo uma escola, um estádio, sucessivas zonas industriais. O percurso torna-se agradável a partir de Alhandra graças a um habitante que, vendo-me avançar na direcção da N10, me aconselha o Caminho Ribeirinho para Vila Franca – um espaço magnífico à beira do Tejo, quatro quilómetros que parecem curtos, Tejo, ar, luz, plantas, a ponte, ciclistas, corredores e muitos caminhantes. Um francês ter-me-ia olhado sem reagir, vai para a N10, estúpida opção, o problema é dela; este homem, que me chama para indicar o melhor caminho, manifesta uma das facetas que mais aprecio nos portugueses. Tal qualidade corre, no entanto, o risco desaparecer por via da crescente violência urbana; e, desde que comecei as minhas viagens, aprendi já a medir a insegurança na proporção inversa deste civismo.
Chego às dez horas a Vila Franca, começo a sentir o peso da mochila, sento-me no parque, entre o rio e a estação, à sombra, para refrescar, o calor chega já aos trinta graus, parece-me, como uma sanduíche, nozes, figos, uma banana, bolachas vitaminadas: o movimento abriu-me o apetite. Falta-me caminhar quase vinte quilómetros até à Azambuja. Saindo de Vila Franca encontro-me, uma vez mais, numa zona semi-rural, semi-industrial, sem urbanismo nem urbanidade, lixo, fábricas, vacas a pastar, caminho à beira da estrada, não há passeio, uma vez mais, contudo, poucos metros adiante, vejo casas com paredes brancas, roupa estendida, vasos de flores, humanidade teimosa num mundo de brutos, continua a não haver passeio, que municipalidades são estas, apenas uma ponte aérea para os peões não serem todos os dias espalmados, acabo por chegar a uma estrada mais calma, entalada entre a zona industrial, um esgoto malcheiroso e a linha do caminho de ferro. Passo a estação de Castanheira do Ribatejo, chego à do Carregado. Faz cada vez mais calor. No primeiro restaurante como uma sopa de feijão verde – deliciosa. Compro outra garrafa de água. E continuo.
O objectivo é seguir na direcção de Vila Nova da Rainha para chegar à Azambuja pela N3. Interessa-me ver Vila Nova da Rainha, onde Almeida Garrett desembarcou, vindo num vapor do Terreiro do Paço; e presumo que seja possível caminhar à beira da N3. Pois... Não sei como é, leitor perplexo, talvez consequência do calor, que me atordoa, do decorrente cansaço, que me surpreende, qualquer lei da física estabelecerá a relação entre a temperatura do ar e o peso das mochilas, o da minha, embora eu tenha bebido os dois litros de água, parece aumentar, devia encontrar uma ponte que não vejo, pergunto a sucessivos passantes, a Azambuja é por ali, vire à direita, sempre em frente, perdi as setas amarelas do Caminho de Santiago, encontro-me à beira de uma estrada sem berma, devera retornar, procurar as setas, alguma falhei, o calor e a mochila comprimem-me a inteligência, voltar atrás, redobrar a caminhada, teimo pensando que será assim durante alguns metros, mais adiante voltarei a encontrá-las, todavia quanto mais avanço, maior o perigo, há meio metro entre o muro e os camiões, não me atrevo a atravessar, avançar é loucura certa, recuar também, por que diabos me meti nisto, a minha terra perdeu a brandura, a cortesia, afabilidade do caminhar, devera eu seguir o Caminho francês, de Le Puy-en-Velay a Santiago de Compostela, mil e seiscentos quilómetros turísticos, protegidos e acompanhados.
Como é que eu vou sair daqui?
domingo, 30 de maio de 2010
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Manuela, com essa determinação da maneira habitual. Superiormente!Boa viagem.
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