quinta-feira, 20 de maio de 2010

Sobre a blague de a língua portuguesa ser “muito traiçoeira”


Manuel Simões

Não sei se foi o apresentador/humorista Herman José quem inventou esta expressão mas é ele quem a tem difundido com a intenção de pôr em evidência segundos sentidos de palavras cujo significado primeiro não tem referências de carácter obsceno ou licencioso. Mas a ele interessa-lhe vincar precisamente este aspecto e, não fosse o público não perceber, eis que recorre ao que já se tornou um lugar-comum que se ouve com muita frequência: “a língua portuguesa é muito traiçoeira”.



A convicção posta na utilização assídua e apodíctica deste lugar-comum parece querer conceder à língua portuguesa o exclusivo da ambiguidade e da polissemia de um grande número de palavras, o que é um tremendo disparate, antes de mais porque esta é uma característica essencial da linguagem, mais acentuada porventura na sua realização popular. E não é uma concessão dos deuses à língua portuguesa pela simples razão que é um aspecto distintivo de todas as línguas, não sendo de estranhar que se desenvolva mais acentuadamente em campos semânticos onde se pretende introduzir a “transgressão”. Isto quer dizer que, na sua realização concreta, ao referir-se a termos apercebidos com algum pudor, a língua utiliza eufemismos aparentemente inócuos, cuja função é a de atenuar a crueza da expressão ou a de provocar efeitos irónicos, desencadeando o riso ou enriquecendo a expressão literária que vive, como se sabe, de imagens e de metáforas. Como escreveu Eça de Queiroz de forma bem expressiva: “sobre a nudez crua da verdade o manto diáfano da fantasia”.

Reportando-me apenas às línguas românicas, as que conheço melhor, poderia ilustrar esta característica com variadíssimos exemplos. Mas serve perfeitamente o caso do italiano que, para designar o órgão sexual masculino, para além dos nomes técnicos ou populares, usa os termos “pássaro”, “cenoura”, “pepino”, “ervilha” (linguagem infantil) e outros vegetais; ao português “comer” (em sentido sexual) pode opor-se o italiano “scopare” que, literalmente, significa ‘varrer com escova, escovar’.

Passando ao francês, também haveria inúmeros exemplos, e alguns bem interessantes. Fico-me pelos mais conhecidos, como “baiser” (‘beijar’ e ‘fornicar’) e de cuja ambiguidade já todos nos apercebemos nas legendas aos filmes franceses (que agora não vemos, mas isso é outra história); “pipe” que, como se sabe, significa ‘cachimbo’, assumindo, porém, o significado transgressivo na expressão “faire une pipe” (‘sexo oral’), sofrendo um desvio semântico mas não semiológico; ou ainda “valseuses” que significa ‘pessoas que dançam a valsa’ ou ‘testículos’, de acordo com a situação contextual.

É claro que a polissemia provoca não poucos problemas aos tradutores menos atentos. Já pensaram num italiano que não dominasse perfeitamente a língua portuguesa, em presença das inocentes palavras “fica” (terceira pessoa do singular do vervo “ficar”) ou “minhota”? É que à primeira corresponde, em italiano, um dos termos mais frequentes para designar o órgão sexual feminino; e à segunda (escrito “mignotta”, com o ‘o’ aberto) o significado de “prostituta”. Além das interferências lexicais, estes exemplos servem para destruir a pretensa especificidade da língua portuguesa como “língua muito traiçoeira”, expressão que, só por ignorância, continua a ser exibida sem pudor.

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