quarta-feira, 2 de junho de 2010

Ceci tuera cela? (as novas tecnologias significarão a morte do livro? )

Carlos Loures

Para encerrar, por agora, esta questão da ameaça do livro electrónico ao livro impresso, começo por transcrever palavras de José Afonso Furtado em O Que é o Livro: «Uma das imagens recorrentes em diversas obras que se dedicam a problemas de História ou da Sociologia do Livro e da Leitura é uma passagem clássica do romance Nôtre-Dame de Paris, de Victor Hugo. Nela, o arcediago abre a janela da sua cela, contempla por algum tempo a Nôtre-Dame, estende a mão para o livro impresso aberto na sua mesa e, lançando um olhar triste para a igreja, profere a conhecida frase: ceci tuera cela.».

Embora como José Afonso Furtado diz, este imagem seja recorrente, utilizo-a mais uma vez porque facilita a compreensão do que quero expor. Segundo o próprio Victor Hugo explica depois, a frase dita pelo arcediago Claude Frollo (o protector de Quasímodo), reflecte o espanto e o receio do sacerdócio, naquele final do século XV, perante o “prelo luminoso de Gutenberg”, o confronto entre a palavra escrita e a palavra falada. Victor Hugo explicita depois num capítulo do romance a sua previsão de que «o livro matará o edifício». Segundo ele a invenção da imprensa é o maior acontecimento da história da humanidade. A «bíblia de chumbo» irá substituir a «bíblia de pedra». Como disse McLuhan, a arquitectura gótica, a escultura, a iluminura ou a glosa medievais eram suportes da arte da memória e o eixo da cultura da escrita. Temia-se que o advento da imprensa pusesse tudo isso em causa e em risco de extinção.



Tal como nesse fim do século XV se temia que um avanço como o que a imprensa significava, pusesse em risco a forma mais popular de comunicar com as massas – a arquitectura gótica, através das quais multidões de gentes iletradas, que faziam das catedrais o seu local de encontro e de passeio dominical (tal como hoje as famílias vão ao centro comercial) «liam», nos elementos escultóricos de pórticos, túmulos, capelas e retábulos, passagens das Sagradas Escrituras, teme-se agora que as novas tecnologias da informação ponham o livro em risco de extinção.

Penso que se trata de um falso receio e de um falso problema. Embora, indubitavelmente, o cenário mude – já mudou - e os editores tenham de se adaptar a ele. E esse é um dos problemas – o mundo da edição está ainda povoado por muitos editores que actuam por emoção, por «fezada», por feeling. O feeling que têm usado como sistema, vai deixar (se é que não deixou já) de ser suficiente – vão ser necessários investimentos, nomeadamente na área da formação.

As novas tecnologias só podem ser aliadas do livro, nunca adversárias. Concorrentes, sim, inimigas, não. Mas isto, se os editores estiverem apetrechados, inclusive com formação específica que desde há dezasseis anos existe, tendo começado com um curso de especialização na Faculdade de Letras de Lisboa e existindo agora outros cursos na Católica e na Nova. Na realidade, do mesmo modo que é impensável um médico ou um engenheiro autodidactas, deveria pôr-se na gaveta das recordações o editor «sem mestre, mas com jeito», como diria o José Fanha.

Os editores continuam a publicar por feeling. E não nego que existem pessoas no mundo da edição com uma espécie de sexto sentido. Mas até esses sobredotados às vezes se enganam. A edição é uma ciência. Existem técnicas que podem ser postas ao seu serviço. A vocação é necessária, mas a formação é indispensável. Na ponderação dos factores que contribuem para a crise do livro, a impreparação dos editores (de alguns editores, diga-se) pesa mais do que a ameaça das novas tecnologias. Essa ameaça perfila-se no horizonte e poderá não passar de uma profecia falhada. A falta de formação de muitos intervenientes na edição, é um mal enquistado desde sempre. E perante esse cenário, não é preciso que o livro electrónico triunfe sobre o impresso em papel – há cavalos de Tróia dentro do mundo da edição.

E assim introduzo a questão que tenciono abordar em seguida – Crise do livro (os editores, parte da solução ou parte do problema?)

2 comentários:

  1. Como teu companheiro na edição durante 25 anos, subscrevo na totalidade o que escreves sobre o tema, fruto de conhecimento e não de teorias, da realidade do Sector Editorial em todo o Mundo.
    Como descreves, desde sempre houve medos, apreensão e contestação sobre a evolução da ciência e, mais recentemente, da tecnologia com particularidade na área das Publicações.
    A primeira preocupação e contestação começou com os Jornais e Revistas, estendendo-se agora aos livros.
    No caso dos livros ainda me lembro de uma experiência de publicação dos livros reproduzidos em leitura por cassetes (fitas) de audio. Foi um fracasso.
    A evolução tecnológica apresenta agora a possibiliddae de se poderem ler todas publicações(incluindo livros) pelo computador, pelo telemóvel e outros meios que virão, incluindo a própria televisão.
    Tal como dizes e estou de acordo contigo, as publicações electronicas são um complemento e não um inimigo das impressas em papel.
    Vivemos no século XXI e a realidade é diferente do século XX. As casas são mais pequenas. Não têm espaço para estantes de livros. O interesse pela leitura vai manter-se e até prevejo aumentar, dada a facilidade com que se vai ter acesso à informação de tudo o que é publicado.
    Quem ainda tiver casas com espaço e também para os que gostem do chamado cheiro do papel e do folhear das páginas, o livro impresso vai continuar a existir e a vender-se. Apesar de já haver muitos livros em edição electronica, a venda de livros tem vindo a aumentar.
    Concordo contigo quando dizes que vai ter de haver uma reformulação do conceito de EDITOR, o que implicará formação adequada ao tempo. Na área do jornalismo já há muito tempo que há escolas e formação de jornalistas, mas apenas na área da escrita. Que eu saiba não há Escolas de formação para Editores de Publicações, com especialização nas várias áreas que abrange.
    É urgente tomar medidas e não é tempo de lamentações ou de baixar os braços á realidade das tecnologias disponíveis que vão continuar a evoluir. Os Editores vão ter de acompanhar a evolução e não combatê-la. Há que formar uma nova geração de EDITORES

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  2. Nôa há escolas de formação profissional, mas há cursos de especialização na Faculdade de Letras de Lisboa (há quase vinte anos) e na Católica; não sei se há outros cursos. Bem sei que são cursos onde não se aprende a ser editor na acepção portuguesa do termo que, como sabes, corresponde ao publisher. Estas pós-graduações são vocacionadas para a formação de técnicos editoriais (editors). Em todo o caso, proporcionam uma pespectiva correcta da profissão, combatendo a prevalência do feeling, do sexto sentido, do «eu acho que»... Muitos pequenos e médios editores acham-se dotados desse tal sexto sentido que tantas falências tem provocado. <continuarei a abordar estes temas. Depois, faremos aqui um debate para o qual estás desde já convidado.

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