FESTA PARA O PRÍNCIPE VENTUROSO.
Ato 2º
(A cena é a céu-aberto. No grande convés da nau-capitânea, num ângulo onde chegam as sombras dos grandes mastros e velas, está uma grande mesa retangular. Na cabeceira, em direção da popa, a cadeira de braços, ricamente trabalhada, do Comandante. Nos dois lados da mesa, seis de cada lado, as cadeiras para os capitães. Sobre a mesa, dispostos para os hóspedes, canecas com tampa, pratos covos e jarros gomil. Distante, num ângulo semi-iluminado, um tamborete baixo, onde se senta o Mensageiro.)
Senhor,
agora vereis uma cena de harmonia. Nela Vossa Alteza poderá mais uma vez verificar o gênio que guia os Vossos homens nos caminhos do desconhecido.
Era cedo quando aqui chegamos, nessas Vossas ilhas do Cabo Verde. São Nicolau nos está diante e assim todas aquelas outras do grupo a ocidente de Barlavento. Elas se desperdem pontilhando as águas desse mar, fronteando o Cabo. As outras, a oriente e de Sotavento recamam as águas.
Ali está a mesa onde daqui a pouco se sentarão com o Capitão-mor os doze outros capitães dessa Vossa armada. Aquela é a bela cadeira de braços, a predileta de Álvares Cabral. Naquelas canecas e naqueles pratos os bravos restaurarão as forças que o mar teima em minar. Daqueles belos jarros gomil, vindos de longe, de Vossos domínios da China, será servido o bom vinho que dará alegria e conforto àqueles que se preparam para o encontro infinito.
Escutai,
já as outras naves se aproximam da nau-capitânea. São os capitães que chegam e se acingem a subir a bordo. Eis o primeiro, o muito nobre Sancho de Tovar, ricamente coberto com a sua capa escarlate. Gonçalo Coelho segue-o logo depois na fidalguia constante de seus movimentos. Agora chega Bartolomeu Dias, a cabeça resoluta sempre descoberta, o vestuário despretensioso e o fazer lhano de quem pode a cada momento reencontrar o Tormentoso. O rico Aires Gomes sobe a bordo sem abandonar os adornos típicos de seu poder e bom-gosto: inseparável a pedra bazar que lhe está atacada ao peito para defendê-lo de todos os venenos e de todos os malefícios. Em seguida chegam Simão Miranda e Aires Correa, e o jovem Diogo Dias, e Gaspar de Lemos, e Pero de Ataíde, e Luís Pires, Simão de Pina e o sempre austero Nuno Leitão da Cunha. Chega Vasco de Ataíde, o último a subir a bordo. Parece que vem de longe e seus olhos miram distante. O infeliz capitão está presente e ausente, ao mesmo tempo, naquele olhar que não sabe liberar-se do ondejar intermitente das águas.
A mesa está pronta. O Comandante se dirige aos seus capitães e lhes fala longamente. Coisas do alto interesse do Reino se tratam neste momento. Os capitães escutam e aprovam as palavras do Comandante. O rosto de Álvares Cabral é aquele sempre nobre gesto do homem em paz consigo mesmo e com o mundo. Depois de longa exposição, escuta os seus companheiros. O primeiro a falar é Bartolomeu Dias. Nota-se pelo movimento fogoso de suas mãos e braços que ele anseia pela missão projetada nas palavras do Comandante. Gonçalo Coelho acompanha Bartolomeu Dias em seu entusiasmo. Os outros concordam, depois de prolongadas trocas de opiniões. Os capitães se levantam da mesa e seguem o Comandante em direção da proa. De lá todos eles olham o grande mar como numa procura de caminhos e confirmações. Longamente ali ficam, os treze heróis. As estrelas iluminam a nave e aquelas figuras eretas são treze estátuas móveis prontas para a grande caminhada.
Ao longe ouve-se o assobio prolongado dos marujos indormidos nas gáveas, nave por nave.
FESTA PARA O PRÍNCIPE VENTUROSO.
Ato 3º
(A cena é um vazio abstrato, onde mar luz e espaço infinito se confundem com o silêncio. A luz se acentua e o silêncio. De uma zona de sombra, aparece o Mensageiro.)
Senhor,
tristes notícias Vos trago.
Como pode um mensageiro do Príncipe trazer not¡cias que não sejam de exaltação do Soberano? Pode alguma força desconhecida ousar contra a Perfeição? Que força é esta que modifica a voz do mensageiro, transtorna a beleza de suas palavras portadoras de glórias, faz mais pesada a longa caminhada desde o centro dos eventos até este palco da Magnífica Alteza?
Senhor,
tristes notícias Vos trago, mas a minha voz se nega de narrar a cruel realidade. O mensageiro sonha sempre de dar asas às suas palavras. Sonha que elas possam voar como os pássaros e chegar velozmente aos ouvidos do Príncipe, enlevá-Lo ao conhecimento das doces e felizes novidades, entreabrir-Lhe os olhos às maravilhas do desconhecido conquistado. Sonha que as palavras aladas encham de música todo o espaço real e revelem até mesmo a concretização dos sonhos.
Por que, por que esta força desconhecida cortou as asas de minhas palavras e secou-me a garganta?
Senhor,
havíamos superado o Cabo Verde e a doce São Nicolau que nos hospedara por momentos já se escondia nas brumas do mar. A noite caíra. No mar quase bonançoso, as nossas velas caminhavam tranqüilas. A noite dirigia os pilotos indormidos na direção da rota nova. Pero Escolar, na guia da nau-capitânea, perscrutava as estrelas e os insólitos movimentos das correntes. Tudo era silêncio naquele mar de calma. Somente se sentia o romper das proas e o alternado aviso dos marinheiros atentos no alto das gáveas.
Mas que noite é esta que na calma perfeita das coisas preanuncia tantas desgraças? Os homens não sabem, mas dentro desta noite corre o hálito miserável da desfortuna.
Amanhece o dia numa plenitude de luz e sossego. O bulício da gente nas naves ecoa nas águas. De repente, o aviso de nau dispersa. Falta Vasco de Ataíde. As velas se movimentam intranqüilas na busca. Os espaços se dilatam na calmaria. As naves correm lá e cá na busca incessante. Os gritos dos marinheiros se entrecruzam e as vozes se misturam com a calma das ondas e com a luz infinita feita de azul verde amarelo vermelho verde amarelo azul e branco. Muito branco. Branco.
Nada, nada foi possível. Vasco de Ataíde e os seus marinheiros desapareceram naquele branco infinitamente calmo.
terça-feira, 3 de agosto de 2010
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Continuo a seguir apaixonadamente!
ResponderEliminarMuito boa esta obra de Silvio Castro. É um importante trabalho de divulgação que o Estrolábio esta fazendo.
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