quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Memorial do Paraíso, de Silvio Castro - 5


7 de abril


Muitas vezes toda a tripulação da nau e mais todos os outros viajantes se encontram diante do oratório suspenso, minha doce Maria, principalmente nas ave-marias. Então está também conosco o nosso Comandante. O nobre Pedro Álvares Cabral pede nessa ocasião a D. Enrique que comece os atos. Acompanhando D. Enrique, um dos religiosos franciscanos entoa as orações vesperais. Nessas horas, minha querida filha, o espírito divino desce sobre os homens e deslisa sobre o marulhar constante das águas. Olhando no horizonte, dentro do vago entardecer, me parece de poder ver nos infinitos distantes dessas águas uma paz e uma certeza que pertencem a toda humanidade. É um grande silêncio o figurar das velas e o murmúrio de vozes e lenhos e ondas.

8 de abril

Pedro Álvares Cabral, minha querida filha, o nosso mui leal e nobre Comandante, nos dá o maior exemplo de religiosidade. Ele sempre convive com o espírito de nossa Santa Religião. Sendo austero por natureza, por isso mesmo, pela sua natural índole religiosa é muito capaz de humanidade. É duro e gentil, a um só tempo. Além da participação com todos nós nos atos religiosos coletivos, ele tem na sua pequena cabina, colocada em posto de realce, uma bela cruz de metal. É uma peça não verdadeiramente rica, mas muito bela. É feita de bronze puxado, todo lavrado, gravado e dourado. A cruz pousa sobre um pequeno pedestal de madeira, também esse trabalhado com esmero. Na parte inferior, quase um báculo - toda lavrada, gravada e dourada - alarga-se uma base em arremedo de fortaleza circular sobre a qual se apóia o crucifixo com o Filho de Deus sacrificado. As pontas da cruz são desenhadas em forma de flor-de-lis. Diante da cruz Pedro Álvares Cabral medita sobre essa nossa longa caminhada que nos leva sempre adiante, para onde sabemos que chegar é a meta, mas ignoramos tudo que ela nos fará viver. O vulto debruçado do Comandante é como a nossa vigília diante de um futuro que é nosso e que, noite e dia neste mar, nos mete em vigilante atenção.


"Avante!" - é a voz dos gaveiros que nos recordam a cada instante o navegar sem tréguas. "Avante!" grita sempre a voz. E em mim ressoa "Alerta!" "Alerta!".

9 de abril

Ah! minha querida Maria, navegar é estar sozinho sem solidão. Caminhamos, sempre. Caminhamos. Tudo se repete nos dias e nas noites. Nada de diferente acontece enquanto as velas prosseguem lentas mas constantes neste mar longo e calmo. Somente mar, sol, nuvens, céu. Tudo claro, de uma claridade que espaceia fora e dentro de ti mesmo.

10 de abril

O mar é este gentil caminho que nos leva em todas as direções. Te faço falar Pero Escolar: "Mar. Mar em flor, rebentações de jardins, de todas as cores e flores; mar de fora, mar grande, alteroso de ondas que te cobrem num abraço; mar de fundo, tranqüilo mar, lago, quase teu; mar de água branca, luminoso dentro das águas como um céu convexo; mar alto, mar atravessado, mar banzeiro, de carneirada, quando os rebanhos das ondas tropeçam nos cardumes multicolores; mar cheio, único, não mar desfeito, não mar encapelado, encrespado. Mar espelhado, meu mar."

11 de abril

E assim vamos, minha gentil Maria, nesta navegação. Os dias passam e estamos no mesmo lugar. Sempre neste mar infindo.

12 de abril

Se eu te contasse tudo o que sinto, talvez não chegaria nunca a dizer-te tudo, pois o tempo faltaria, minha querida filha. São tantos os sentimentos que vivo neste instante que arreceio de não poder dizer-te nada sobre eles. Sinto-os, sei como me sinto, mas estou como atordoado. Não em desassossego, como nos dias passados; mas como se dentro de mim tantos pensamentos, desejos e incertezas insones a cada instante me pegassem pela mão e me conduzissem a um vago mas ao mesmo tempo distinto espaço que não vivo, nem reconheço. Quando sinto demasiadamente duro este espaço, me escondo nas minhas lembranças mais amadas, tu - minha Maria -, a nossa casa, o meu passado. Entre tais desequilíbrios me afino com o baloiçar da nau e me adormento.

13 de abril

Então começo a sonhar. Penso profundamente na busca do meu próximo futuro. Calicute está no horizonte e eu fixo o olhar nos dias que virão, no que deverei fazer para dar cumprimento à confiança que o nosso bom Senhor teve para comigo. Me vejo nas brumas desse futuro. Caminho em Calicute. Faço. Me esforço por cumprir tudo. Mas nas brumas de Calicute me perco, de repente. O que será isso que me acontece? Por que não vejo claramente nesses sonhos?

14 de abril

Oh! minha querida filha, não quero atormentar-te com os meus pensamentos. Eu estou bem. Tudo depende somente desse navegar monótono e sem fim. Eu vejo Calicute, sim, a vejo cheia de vida. Tudo transcorre bem, como na vontade de nosso Senhor e Soberano. Calicute ali está, clara, distinta. Finalmente chegamos e nos instalamos. São tantos os sucessos de Portugal, tantos os negócios e as conquistas. As nossas doze naus estarão ancoradas com segurança no porto. Sim, ali estarão ancoradas todas, as naus de Sancho de Tovar, de Bartolomeo Dias... ... ... L estarão, certamente. Mas não as vejo todas. Ah! os meus olhos, os meus pobres e cansados olhos não sabem mais ver. Abandono o olhar fora do mar e correndo para Calicute vejo a azáfama de tantos portugueses em ação. São mil, mais de mil. Todos ativos, vivacíssimos, competentes. Os mouros aceitam o poder indiscutível do Rei de Portugal, e a gente confraterniza em compras, trocas, em mil atos. Tudo vai bem, vejo. Tudo corre bem. Porém, depois chegam as brumas, as eternas brumas, sombras, espectros, que não me deixam.

15 de abril

Que dia é hoje, minha querida Maria? Sim, sim, certamente ‚ quinta-feira. Ou ‚ quarta, ou sexta? Já lá quase me esqueço dos dias. Será este longo mar que nos leva sempre para adiante e aonde nada acontece. Nada acontece, a não ser o deslisar das naus, doze, sim doze, e o murmurar das velas delas na brisa calma.

16 de abril

Sozinho, diante do oratório e já passadas as avemarias, peço ao Nosso Senhor que não nos abandone jamais porque Dele dependemos em tudo e Dele queremos falar para tanta gente nos mundos desconhecidos que nos esperam. Queremos levar até esses mundos o conhecimento da Sua extraordinária Graça, para que todos os infiéis a possam conhecer. Enquanto penso a tudo isso, minha querida filha, fixo o céu sem fim e onde brilham milhares de estrelas. Eu comparo as estrelas que sempre vi na minha terra a essas novas e me repouso em doces pensamentos.

17 de abril

"Aquela lá distante e luminosa é a minha estrela, o meu norte. Não a estrela do Norte, mas a minha guia, o norte do meu navegar. É a minha estrela da alva e também a minha estrela da tarde. Eu amo aquela estrela". É Pero Escolar que assim me fala.

18 de abril

Neste longo navegar, minha filha amada, muito aprendi com Pero Escolar como olhar as estrelas com particular atenção e procurar nelas um sentido para tantas coisas, além da intrínseca beleza qua cada uma delas nos dá. Quanto mais penetramos neste hemisfério desconhecido mais nos parece cada noite refulgir o céu. As estrelas são miríades. Certo, amo as estrelas do céu português, mas me parece que tudo aqui aumente de potência e que também essas estrelas sejam em maior número que as de lá. Disso muito falo com Pero Escolar e também com o sábio João Vizinho. Mestre João, físico de rara sabedoria, nos acompanha em nossos devaneios diante da noite estrelada. Hoje ele me fala em modo particular com comoção do conjunto de estrelas que temos diante dos nossos olhos nessa noite clara. É a constelação da Cruz, conjunto belíssimo de brilhantes estrelas representando o símbolo da nossa redenção nesses céus. A sua estrela alfa é a mais brilhante entre todas aquelas que conhecemos no hemisfério austral. Está situada no "pé" da cruz. A mais distante em relação a esta, no topo da haste, é a "estrela da cabeça" que, quando se encontra em vertical com aquela e em aparente linha reta, indica o sul. Os braços da cruz têm a leste uma estrela do mesmo brilho daquela da cabeça, e a oeste, uma menos brilhante. É uma maravilha da vontade divina a beleza de conjunto dessas estrelas. Nessas noites de calma navegação elas nos acompanham como um fado. Para onde? para que?

19 de abril

Hoje mais do que nunca sinto o cansaço e a angústia dessa viagem sem fim. Esta repetição infindável de coisas enche-me o peito de algo que não sei definir. A falta de uma referência que não seja este mar, este sol, esta noite, estas estrelas, a falta de uma meta definida percorre a atmosfera e me invade. Onde estão as gaivotas, onde a terra?

20 de abril

Parece-me que a opressão que desde ontem agita meu peito não passe. Vejo nos olhos de meus companheiros o mesmo sofrimento. Nada mais vemos, nem desejamos ver que tudo aquilo que esta além disso que vemos. Muitas vezes penso que meus olhos já não enxergam, porque eles me dizem sempre as mesmas coisas.

21 de abril

Deus seja louvado, minha querida Maria! Hoje, terça-feira de oitavas de páscoa, topamos com alguns sinais de terra próxima. Benditos sinais que mudam todo o nosso esp¡rito e nos refrescam a alma! Que alegria nos olhos de meus companheiros diante dessas simples ervas, por eles chamadas botelhos, rabo-de-asno! Pode parecer pouco, minha querida filha, mas para nós é como um novo sol e um rumo novo.

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