sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Memorial do Paraíso, de Sílvio Castro - 6


FESTA PARA O PRÍNCIPE VENTUROSO.


ATO 4º

(A cena é o convés semi-iluminado da nau-capitânea. Do alto das velas os marinheiros que trabalham em afanoso empenho de amainar entoam uma moda dolente. Nos intervalos dos cantos, gritam os gaveiros em espaçados momentos que combinam com o cantar das velas: "Avante!". Finalmente as velas se compõem. No timão da nau-capitânea um vulto semi-encoberto pelas sombras guarda o horizonte fechado, o marulhar das ondas e as luminosas estrelas desse céu. Ao centro da cena entra o Mensageiro)

Ah! doce Príncipe,
quero Vos falar dessa navegação maravilhosa! Já os tristes eventos da desgraça de Vasco de Ataíde e seus marinheiros ficaram escondidos nas brumas do nosso imenso desejo de esquecê-los, para não revivê-los a cada instante, e já nós caminhamos sem outros limites que a ansiedade de chegar. Chegar, mesmo que seja aquele ponto final onde nenhum homem nunca chegou. Para os Vossos súditos, precioso Senhor, os reveses da fortuna são apenas incentivos para novos gestos. Nós, portugueses, sempre aprendemos a superar os fados. As desgraças nos assaltam nesses mares; os Vossos filhos, muitos dos Vossos filhos melhores se perderam nessas ondas tormentosas. Coalhados de barcos lusíadas são esses abismos. Mas nós, doce Príncipe, de todas essas desgraças tiramos novas forças. Os filhos de Portugal se redobram em pujança diante do Tormentoso e não temem os cortejos de espectros.



Príncipe,

vede, ali está o valoroso Pero Escolar. Os espectros dançam diante de seus olhos, procuram desviá-lo da sua rota, atraí-lo para o fundo convexo onde bailam enlouquecidos. Mas Pero Escolar é um forte; fixa sempre adiante, sempre avante, para onde correm as correntes desconhecidas.

"Quem vem lá? Ah! és tu, Pero Vaz?" "Que queres, caro amigo, em meio a tantas sombras? Não sabes que a noite deseja agasalhar os justos como ti? Confia na noite e teu sono será sereno. Não vês que tenho tranqüilamente nas mãos o leme? Sei que temes por este longo caminhar. Estamos indo sempre avante, sempre e não conhecendo que mar é este que se abre aos nossos olhos a cada instante e novo. Certo é que de um momento ao outro ele poderá fechar-se, de surpresa. Por isso eu miro sempre, Pero Vaz, aquela estrela, aquela lá, luminosa, belíssima. Ela é o meu norte, a minha guia. Ela é a minha alva, mas também a minha tarde. A minha estrela dalva, que me cobre os olhos de luz, abrindo-me caminhos, é aquela lá."

Pr¡ncipe,

esse é o piloto da Vossa caminhada. Com a segurança de seus braços, Vossos filhos e barcos superarão esses mares. Caminhamos sempre e sabemos para onde vamos.

Olhai, são os Vossos barcos essas velas que se inflamam ao contato da salsugem do ar. Os silvos que escutai são os gaveiros que não dormem, para maior glória de seu Soberano. A viagem continua a cada dia e a cada dia mais certa de descobertas.

22 de abril, quarta-feira

Valeu, valeu viver muitos anos não sempre felizes, minha querida Maria, para chegar até este dia de hoje. Valeu sofrer tantos reveses e afrontar mil dificuldades para ver e viver o que estou vendo e vivendo. Minha Maria, a partir daqui quero controlar-me o mais que me for poss¡vel para contar-te tantas maravilhas. Quero que tu as vejas, querida filha, assim como posso vê-las, e possas retê-las nos teus olhos. Te quero alegre e feliz. Te contarei tudo, livremente, completamente.

Eram as horas das vésperas quando avistamos esta terra que agora quando a noite começa a cair vejo extasiado diante de mim. Daqui do largo, apoiado ao bordo da minha nau, fixo sem cansar-me a terra. Entre mim e ela o mar é azul e eu percorro a sua distância até a praia e chego à terra. Assim como eu, mil olhares atônitos se fixam na terra. O silêncio cobre tudo, o marulhar das ondas, as vozes estridentes das gaivotas, o azul do mar, o lento cair da noite, as sombras, os passos nos conveses, as vozes de comando, o movimentar das velas no soprar da brisa. Sinto em tudo isso o espírito de Deus.

Quando, de repente - mas sabendo - nesta quarta-feira de maravilhas nossos barcos viram no horizonte a massa, inicialmente quase indistinta, depois lentamente mais clara, alta, altaneira, redonda, daquele monte, e logo depois outras serras mais baixas e mais terras, tantas terras, todos nós tínhamos consciência que um grande evento estava acontecendo. Os barcos continuavam a caminhar na direção da terra e nossos olhares a cada passo mais e mais se enchiam de descobertas. Os capitães, todos os capitães estavam ao lado de Pedro Álvares Cabral, na proa da nau-capitânea, e então o nosso Comandante chamou aquele monte, Monte Pascoal e aquela visão de maravilhas, Terra de Santa Cruz.

Agora é noite, minha querida Maria, e as naves estão ancoradas, numa ancoragem limpa que faz com que esta noite nos conforte toda a alma diante de tantas certezas.

23 de abril

Mais que dormir, minha querida filha, esperávamos que amanhecesse esta quinta-feira de prodígios para ver mais de perto as coisas intuídas ontem. Era ainda manhã cedo quando o Comandante ordenou que se fizesse vela e se dirigisse para a terra. Os navios menores iam adiante explorando aquele mar de águas límpidas, na procura do melhor ancoradouro. Ancoramos diante de um rio que desagua ali mesmo. A primeira manhã passou-se quase toda nesse indagar do mar, não tanto por desconhecê-lo, mas principalmente para encontrar o ponto onde compreender melhor aquela terra nova. Ela sim, minha querida Maria, era para nós um enigma. Nossos olhos a miravam inquietos e ansiosos enquanto as naves se encaminhavam sempre e mais na direção da praia. Quanto mais nos aproximávamos, mais a maravilha e a comoção diante desta descoberta nos enchiam de tensão o peito e o coração. Diante de todas aquelas maravilhas de montes bosques praias luzes cores todos nós, os mil e duzentos portugueses que viviam tamanha emoção, sentíamos um desassossego pleno de entusiasmo e esperanças.

Finalmente às dez horas a ancoragem se completou.

Lentamente todas as naves se agregaram às naves menores na ancoragem tranqüila. Depois de estarmos todos juntos, mais juntos agora de quanto estivemos durante toda a navegação - tudo pela maravilha do espetáculo e pela facilidade da ancoragem - diante de nossos olhos atentos e ansiosos apareceram sete ou oito homens que andavam pela praia, perto da foz de um riacho. O já grande alvoroço que reinava em todas as velas mais se acentuou com a descoberta da nova gente. O Comandante reuniu-se com os outros onze capitães e mandou que Nicolau Coelho fosse até a terra com um batel para conhecer aquele rio. Enquanto o barco de Nicolau Coelho se dirigia para a praia ali acudiram muitos homens que se juntaram aos oito primeiros. Em grupos de dois, três, acompanhavam o deslisar do barco do bravo Nicolau Coelho e quanto mais se aproximava da praia, mais aqueles homens entravam nágua, assim como sempre são, todos nus, nada que cobrisse as suas vergonhas, pardos e fortes, nas mãos trazendo sempre arcos e setas. A barca de Nicolau Coelho caminhava sempre para a praia, e para dentro das águas se moviam aqueles homens. Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles assim fizeram.

Grande maravilha, minha querida Maria, é viver tais encontros. Tudo ocorre como num grande sonho, mas de claras realidades.

O estrepitar das ondas naquela praia era imenso. Com isso pouco pôde Nicolau Coelho comunicar-se com aqueles homens. Porém, mesmo assim, diante de tantos estrondos e barulhos d'água, Nicolau Coelho deu-lhes de regalo aquele pouco que trazia consigo, um barrete vermelho e uma carapuça de linho e mais um sombreiro preto. Um daqueles homens pardos deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e escuras de papagaios, sim, como de papagaios; e um outro lhes deu um longo ramal de continhas brancas, miúdas, semelhantes àquelas de aljofas. Tudo se passou assim, debaixo de um grande barulho e de um grande quebrar de mar que anunciavam noite ruim. Porém os presentes passavam de mão em mão com entusiasmo e alegria. Entusiasmo e alegria que vinham sublinhados pelos estrépitos incessantes das ondas.



Não eram sinais inúteis o estrepitar das ondas que ontem acolheu o primeiro encontro entre os nossos e a nova gente que estamos descobrindo, minha querida Maria. A noite passada foi tão terr¡vel que nossas naves, ainda que bem ancoradas, quase não podiam suportar a violência do temporal. Era tamanho o desassossego que, manhã bem cedo, lá pelas oito, aconselhado pelos pilotos o Comandante mandou levantar âncoras e fazer vela. Então fomos acompanhando a costa, na direção norte, em procura de melhor abrigo, onde pousar com mais tranqüilidade para um grande refornimento de água e lenha. Ainda que nada dessas coisas nos faltasse verdadeiramente, era tanta a admiração pela paisagem que nos acolhia que sentíamos a necessidade de dela participar imediatamente. Queríamos conhecê-la de mais perto, tocá-la, gozar dela, vivê-la intensamente. Caminhávamos sempre assim e na praia podia-se distinguir sempre mais facilmente a presença de tanta daquela gente que já ontem nos recebera. Pela praia caminhavam muitos deles, acompanhando sempre o navegar de nossas velas na procura do melhor porto. Eram mais de setenta, oitenta. O Comandante mandara que os navios pequenos velejassem mais próximos da praia, e assim logo eles encontraram uma bela enseada, com um porto dentro, muito bom e muito seguro. Ali amainamos.

FESTA PARA O PRÍNCIPE PERFEITO.

ATO 5º

(A cena é o mesmo convés do ato anterior. As sombras cobrem a nave e a cena em geral. Depois de acentuado silêncio, um murmúrio indistinto se mistura à penumbra. Lentamente a cena se aclara. Surgem os contornos das coisas; no fundo estão os dozes capitães: Pedro Álvares Cabral e seus onze companheiros. Do ângulo do convés onde está o oratório de pendurar surge o Mensageiro.)

Príncipe,

Esta é a chegada. É o dia que consagra a Vossa vontade de descobertas. Muitas foram as navegações, longas e penosas. Mas, finalmente, as Vossas armas aqui estão para trazer a estes novos mundos o poder de Portugal, para permitir a estas terras e suas gentes de conhecer a Verdade Revelada da nossa santíssima religião.

A Vossa vontade de dilagar sempre mais a Fé‚ cumpre-se majestosamente neste dia de inesquecíveis glórias. Esta é uma conquista, uma revelação que modificará muitas existências. O Vosso poder a partir de hoje se alarga porque as riquezas que aparecerão aos olhos do mundo vindas dessas terras serão infinitas. Muitíssimas e variadas riquezas.

Daqui desta nave já as podemos entrever fixando estas paisagens, estes montes, serras, bosques, florestas, rios. A Vontade de Deus se cumpre ainda uma vez com perfeição: é Portugal, o máximo defensor da Fé‚ a revelar ao mundo este paraíso recuperado.

Príncipe,

este murmúrio que corre pelas águas do mar novo e vai diretamente àquela praia de areias claríssimas não é um sinal de desassossego. Esta gente, esta Vossa gente não é capaz de temores vãos, acostumados e prontos como são a toda e qualquer surpresa. Este vozerio é o admirado sinal de comoção que todos sentem diante do paraíso. Já lá vão no horizonte as luzes perdidas deste dia mágico e a noite se prepara para cobrir de sombras homens animais e coisas. Nossos olhos, meu Senhor, milhares de olhos portugueses não se cansam do olhar tantas maravilhas. Nem mesmo a noite, a mais profunda noite é capaz de impedir tal admiração e maravilha. De todas essas Vossas naves correm os entusiasmos da gente descobridora; de dentro de cada um de nós explode a alegria por este dia. Ali está o nobre Pedro Álvares Cabral, cercado pelos seus onze fieis e bravos capitães. Estes Vossos nobres cavalheiros tomam posse, em Vosso nome, meu Senhor, deste mundo novo. Pedro Álvares Cabral fixa diretamente o monte que nos serviu de orientação para o grande encontro com a terra e grita: "A este grande monte que nos orientou na lenta visão do novo mundo eu dou o nome de "Monte Pascoal", na recordação da santa páscoa que nestes dias festejamos". O valente e nobre Comandante se estreita mais claramente com os seus capitães. Vêde, aquele à sua direita é o seu fiel vice-comandante, Sancho de Tovar. Ele agora fala diretamente com Sancho de Tovar. À sua esquerda está o heróico Nicolau Coelho, veterano dessas empresas gigantescas. Porém, até mesmo Nicolau Coelho não sabe esconder a admiração pelo espetáculo que tem diante de seus olhos. Com ele, nessa admiração incontida, está o herói sem medo, Bartolomeu Dias, aquele mesmo que enfrentando e superando o cabo tormentoso abriu com novas esperanças novos rumos para todo o mundo. Bartolomeu Dias, o sem-medo, move-se inquieto de entusiasmo diante da paisagem de montes e árvores e luzes que ele anseia por explorar e conhecer. Nuno Leitão da Cunha, Pero de Ataíde, Luís Pires, Simão de Pina, Diogo Dias, Simão de Miranda, Aires Correa, Aires Gomes, todos esses nobres homens de Portugal, Vossos braços indomáveis, Majestade, se acercam ao Comandante e ouvem as suas palavras:

"E no nome de D. Manuel, Altíssimo Soberano de Portugal, para maior glória

de nossa Santa Religião, eu chamo esta nova terra «Terra de Santa Cruz»".

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